A caminho de Bremerhaven. Foto: Raquel Jorge

Praias, e-bikes e ovelhas: dias de pedal pela Alemanha

Raquel Jorge cruza a fronteira da Dinamarca e entra na Alemanha “sem perceber”. Colunista do Vá de Bike surpreende-se com o país em 17 dias de pedal.

Ovelhas, companheiras frequentes de estrada da colunista do Vá de Bike. Foto: Raquel Jorge
Ovelhas, companheiras frequentes de estrada da colunista do Vá de Bike. Foto: Raquel Jorge

Entrei na Alemanha sem nenhuma formalidade e sem grandes expectativas. Alias, só me dei conta que já havia atravessado a fronteira quando as placas de sinalização da rota mudaram de cor. E de cara gostei: era uma sequência de placas apontando para diferentes direções, com os nomes dos vilarejos e a distância até eles. Todos os caminhos destinados à bicicleta.

Parei no primeiro vilarejo da costa alemã, Rodenas. Não era um hotel, nem pousada. Era a casa de uma família que tocava um restaurante (o único do vilarejo) e que disponibiliza três quartos da casa para viajantes. Renata, a dona, era romena, o marido italiano, a filha adolescente nasceu na Alemanha e virava os olhos toda vez que se referia à mãe, como quem pede desculpas. Uma família querida que me acolheu, alimentou e contou causos, com a ajuda do Google tradutor, já que ninguém falava inglês. Na hora da despedida, ela, a dona da casa, me abraçou forte, me deu um beijo no rosto e por um breve momento achei que iria chorar.

De Rodenas segui para o Sul, ora contornando fazendas, ora paralela ao mar. Tudo na Alemanha me surpreendeu. A afetividade e simpatia das pessoas, onde eu esperava frieza. A excelente qualidade das rotas ciclísticas, onde eu esperava cascalho. As maravilhosas tortas de maçã (servidas frias com a maçã ao dente), onde eu esperava apfterstrudel. Praias gramadas e coloridas, onde eu esperava pedra cinzenta.

Um povo divertido, que fala e ri alto. Gente como a gente, que conversa no elevador e oferece ajuda quando te vê na rua com o mapa na mão. Mas não se enganem, carregam zero de latinidade. A ordem e a disciplina dominam e impressionam. Tudo foi pensado e executado com precisão.

Foto: Raquel Jorge
Foto: Raquel Jorge

No que diz respeito às rotas ciclísticas, são de cair o queixo. Belas, seguras e quase sempre asfaltadas. Não um asfalto qualquer, mas aquele em que você desliza como se entre a roda e o chão não houvesse atrito. Nos cruzamentos das cidades, descanso para as mãos nos postes, para que o ciclista não precise colocar os pés no chão enquanto aguarda o sinal verde. Os faróis para bikes sempre posicionados na altura ideal. E os trens contam com um vagão exclusivo para bicicletas. Ok, isso existe em vários lugares, a diferença aqui é que o vagão em questão é todo de paraciclos, onde você pode prender a bike no chão ou pendurar na “parede” do trem.

Se eles pecam por algo, é por excesso. Como há ciclorotas para todo e qualquer lugar, além das ciclovias locais, as placas às vezes podem ser confusas. A rota das vaquinhas, a rota dos moinhos, a Rota do Mar do Norte, entre várias outras. Eu nunca saí da ciclorota, mas me perdi várias vezes, onde após muitos quilômetros pedalados me dava conta de que estava na rota errada. Com isso, foi na Alemanha onde pedalei os trechos mais longos, chegando a fazer 110km em um dia.

Com a exceção de Hamburgo, que é uma cidade grande e, devo dizer, maravilhosa, o que conheci foi uma Alemanha rural e costeira. Lugares simples, despretensiosos, em que praticamente ninguém falava inglês, mas ainda assim cheios de charme. Foi também o país onde cruzei com mais pessoas viajando de bicicleta, e para minha surpresa, todos bem mais velhos do que eu.

Peguei uma balsa em que, além de mim, havia mais uns 40 ciclistas – e eu era de longe a única com menos de 50 anos. Foi onde entendi a importância das bicicletas elétricas, o quanto elas são inclusivas. Pessoas que do contrário não optariam pela bike como meio de transporte hoje transitam para lá e para cá em duas rodas, e muitas se aventuram pelas ciclorotas do país e além.

Na Alemanha, a Rota do Mar do Norte mistura um pouco de tudo, você atravessa fazendas de trigo e de maçã (tive a sorte de pegar a melhor época, comi muita maçã madura pelo caminho), florestas encantadas que te remetem às histórias que ouviu na infância, e praias.

As praias são estranhas. Ao invés de areia tem grama e sobre a grama há pequenas cabines que se abrem e viram uma espécie de sofá com cobertura. Pedalei trechos enormes por praias e foi raro ver alguém na água. Mas muito comum vê-los na lama. Muitas das praias pelas quais passei eram formadas por muitos e muitos metros de lama antes de se chegar ao mar, e a diversão da galera era tirar os sapatos, arregaçar as calças e passar o dia caminhando entre a grama e a água. Tudo muito diferente do que entendemos por praia. Ainda assim, belo e colorido. Isso sem contar os pores do sol, todo dia um espetáculo diferente, mas sempre envolvendo uma bola de fogo a mergulhar para dentro d’água.

Atravessei um trecho bem longo onde de um lado havia uma reserva natural e o mar. Do outro lado fazendas com ovelhas. Muitas e muitas ovelhas: em alguns trechos era necessário até parar e dar passagem para elas. Em outros tinha que ir desviando, pois muitas se deitam na via e nem se incomodam com a sua presença. São seres simplesmente adoráveis. E de certa forma foram minha companhia, principalmente nos dias de retas intermináveis pedalando debaixo de uma chuva torrencial. Apenas eu, a estrada e centenas de ovelhas a me observar atentamente com olhos cor de caramelo.

Foram 17 dias, 677 km pedalados, 63 km de trem, três raios quebrados, muitas tortas de maçã e inúmeros sorrisos pelo caminho. Vivi cada dia consciente que cada momento, cada lugar, cada situação, seriam lembrados com saudade e carinho. E foi debaixo de sol, calor e com o mar ao meu lado que cruzei mais uma fronteira. Deixei a Alemanha com a promessa de um dia voltar. E entrei na Holanda.

A caminho de Bremerhaven. Foto: Raquel Jorge
A caminho de Bremerhaven. Foto: Raquel Jorge
Raquel Jorge fez uma cicloviagem de 6.200 km pela Europa, contornando o Mar do Norte e passando por Noruega, Suécia, Dinamarca, Alemanha, Holanda, Bélgica e Inglaterra. E ela conta os detalhes aqui no Vá de Bike, da preparação aos desafios do caminho, com dicas para quem tem vontade de ganhar o mundo e informações sobre a mobilidade nos locais onde passou. Veja o que ela publicou por aqui.

3 comentários em “Praias, e-bikes e ovelhas: dias de pedal pela Alemanha

  1. Ola, parabens. Estou lendo tudo sobre blke e alemanha. Ja pedalei na FRança e Espanha, mas pretendo pedalar ao longo do Rio Reno em setembro. Que conselhos me darias sobre onde e como se hospedar, se comprar a bike. Voce já fez esse trajeto ?

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  2. Uau! Amei a descrição, meu projeto é fazer rotas de bike pela alemanha daqui uns dois anos. Os alemães são tão perfeitinhos! Como não amá-los? Morei em
    Düsseldorf dois anos e me apaixonei pelas rotas de bike e o respeito pela bike em todo lugar.

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