Raquel Jorge se despede da Holanda com lama, chuva e “bicho de franja ruiva”
Estrutura para bicicletas também impressionou nossa colunista, que ainda encontrou um “Deus do Olimpo” pelo caminho e fez uma tatuagem com ele. 🙂
Todos sabem que a Holanda é uma referência mundial quando o assunto é bicicleta. Após pedalar por 15 dias pelo país acho que posso dizer que, de fato, é um lugar que supera e muito quaisquer expectativas que se possa ter a respeito. Simplesmente perfeito para ir e vir em duas rodas.
Após os primeiros dias – belos, porém difíceis -, o pedal ganhou ritmo. O tempo melhorou e pude apreciar tudo que o país tinha a oferecer. O trecho entre Van Helder e Bergen foi de 57 km pelo zigue-zague com o qual já estava me acostumando. Passei por praias de dunas brancas, vilarejos com ovelhas e moinhos, e no final, para fechar com chave de ouro, uma floresta.
A floresta terminou em uma rua. Não uma rua qualquer, mas uma rua linda, cheia de árvores monumentais. Embaixo delas, cafés e varandas coloridas com pessoas sorridentes. Um lugar único em que as casas e o comércio se misturavam com o parque.
No dia seguinte levei minha bike pra oficina, dois raios quebrados, o computador que mede distância e velocidade desistiu da vida depois de três dias de chuva intensa e a corrente estava fazendo um barulho enlouquecedor.
Ficar sem bicicleta me atormentou a alma. Não dei nem cinco passos. Na porta ao lado aluguei uma Gazelle para passar o dia. Linda, 7 marchas, com campainha e trava de fábrica! Foi amor à primeira vista. E com Gazellle me aventurei até a cidade vizinha, Alkmaar.
Uau, que cidade! Mais uma mini-Amsterdam. Fui pedalando sem destino até entrar em uma viela cheia de charme. Avistei uma placa que dizia em letras gordinhas: “Tatoo”. Sentado na porta, um homem (lindo).
Parei, olhei para ele e perguntei: quer casar comigo?
Ele me mirou com aqueles olhos de um azul da cor do mar e disse: não, tô de boa!
Retruquei: e tatoo, rola?
Ele, sem perder aquele ar de Deus do Olimpo: Ah, tatoo rola!
E foi assim que, em um dia qualquer pedalando pela Holanda, adquiri a terceira tatuagem da minha vida!
O que mais seduz em simplesmente seguir em frente é que nunca sabemos o que vamos encontrar. Todo dia é diferente do anterior que será diferente do próximo. Não há uma rua, caminho, relevo ou curva que você reconheça, pois nunca passou por ali antes.
Eu não posso dizer que conheço o lugar pelo qual acabei de passar. Eu o conheci hoje. Não sei que cheiro, que cor, que textura ele tem no inverno, ou na primavera, ou simplesmente na chuva. Só sei como ele foi hoje, para mim.
Sair de Bergen foi um luxo. Que cidade surreal, não dá pra acreditar que as pessoas realmente vivem em lugares assim, saídos de dentro de uma fábula, onde tudo que aprendemos em relação a “como deve ser”, de fato é!
Apenas bicicletas e pedestres são permitidos nos parques, pois não poluem, não fazem barulho e não interferem no meio ambiente. Tal privilégio me permitiu ver veados maravilhosos, com galhadas intactas. Mais à frente me deparei com um congestionamento de um bicho que nem sei o nome, da família dos bovinos, mas com chifres enormes e franjas longas e ruivas – fiquei parada uns bons minutos antes de criar coragem para passar por eles.
Os dias seguintes foram incríveis, ainda pelos parques e sempre próxima à costa, passando pelos vilarejos mais encantadores e por enxames de bicicletas. Até que chegou o dia de voltar para a cidade grande: Rotterdam. E foi neste dia que perdi o medo de chegar em grandes centros pedalando, muito por conta das queridas placas. Impressionante como uma sinalização eficiente muda a vida da pessoa. E claro, por haver ciclovias para todo e qualquer lugar que se queira ir. E aí você entra pela perifa e vai vendo a cidade ganhar corpo, os prédios vão ficando mais altos, as ruas mais movimentadas.
Uma vez na cidade segui as placas que apontavam para o “Centrum” – sempre o melhor lugar para ficar. Lá encontrei um hotel bem barato, deixei tudo no quarto e fui pra rua. Primeiro ao Centro de Informações ao Turista comprar mapas. Mas não tinha o que eu queria. Eles me indicaram uma livraria do outro lado da rua. E aí foi uma perdição. Pensem na livraria dos sonhos! O setor de viagens era gigante, com guias e mapas de papel. Mapas de todos os lugares e de todos os tipos, incluindo uma estante inteira só com mapas de rotas ciclísticas! Mandei beijos ao Universo!
Passei o dia pedalando por Rotterdam, tentando entender a dinâmica desta cidade fascinante. Ela é bela, mas não é charmosa. É funcional, mas não é fria. Demorei um pouco para me situar. A água, que sempre funciona como referência, estava por todos os lados com suas pontes e passarelas.
Pontes antigas ao lado de outras extremamente modernas. E em todas há o espaço para o carro, para a bicicleta e para o pedestre. Sem dramas, tudo fluindo harmoniosamente. Começou uma chuva forte, parei em um café italiano e, para minha surpresa, na frente tinha um estacionamento para bicicletas. Como os de carros, mas só para bikes, com segurança na entrada e direito a ticket para retirar a bike na saída. Detalhe: era gratuito! Eu já estava flertando com a cidade, mas depois dessa eu me apaixonei.
Mas era preciso seguir em frente. Na saída da cidade uma surpresa. Quando estudei a rota achei que era uma ponte. Quando cheguei na beira da água descobri que tratava-se de um túnel – ao menos era para lá que a placa me mandava ir. Para chegar a ele escadas rolantes. Perguntei para o funcionário: tem elevador? Claro que tem. Esses holandeses pensaram em tudo! E lá fui eu pegar o elevador. Eu, uma mulher e uma criança. Todos de bicicleta. Claro, era um túnel exclusivo para magrelas. Segui sorrindo!
Crescer na roça é assim: aprendemos a amar os elementos da natureza. Tanto o sol quanto a chuva. Tanto a grama quanto a lama. No caminho entre Domburg e Cadzand-Bad fui brincando de ser criança. Passando por imensas poças de lama, dando meia volta e gritando: de novo!
Não teve sol. O dia começou com céu branco (que sempre me angustia). Peguei uma balsa em que o andar inferior era exclusivo para bicicletas, cheio de paraciclos. Do outro lado a chuva! Veio forte e deliciosa. No começo pensei: “Putz, chuva”… mas estava calor, dia típico de verão, úmido e abafado. E todos que passavam por mim sorriam. Os adultos mostrando alegria, as crianças, euforia. Fui ficando com a alma leve e pensei: é só chuva! Que delícia!
Daí pra frente foi uma gostosura. Chuva, mar, lama e torta de maçã.
Segui adiante, mais água na cachola, gotas gordas despencando com convicção. Fui obedecendo as plaquinhas até que deu defeito: obras na pista. Um mar de lama sem fim e rota interditada. Mas essa galera é sapeca e já tinha placas indicando o caminho alternativo. Nele eu fui, mandando beijos para o engenheiro dessa empreitada.
Cheguei em Cadzand-Bad toda ensopada. Menos as meias. Que a chuva é esperta, mas eu sou mais! Também tenho os meus truques.
Achei um hotelzinho bem meia boca, mas baratinho (considerando onde estava). Fiz check in, lavei a bike, lavei roupa, lavei capacete, luvas e a bota. Fui caminhar na praia e assistir meu último por do sol na Holanda. Próximo destino: Bélgica. E pode vir lama, e pode vir chuva!
Raquel Jorge fez uma cicloviagem de 6.200 km pela Europa, contornando o Mar do Norte e passando por Noruega, Suécia, Dinamarca, Alemanha, Holanda, Bélgica e Inglaterra. E ela conta os detalhes aqui no Vá de Bike, da preparação aos desafios do caminho, com dicas para quem tem vontade de ganhar o mundo e informações sobre a mobilidade nos locais onde passou. Veja o que ela publicou por aqui.