A bicicleta como elemento comum na vida da Noruega, em meio a civilidade e segurança
De pedalar pela estrada a atravessar a rua caminhando, coletivo prevalece sobre o individual nas relações no espaço público norueguês.
É difícil resumir o mês que passei na Noruega em um único post. Foram tantas situações, tantas histórias, tantos lugares que poderia escrever um livro sobre minha experiência neste país, que se mostrou surpreendentemente belo e acolhedor, apesar do frio e da chuva que lá encontrei.
Percorri um total de 1.914 quilômetros, dos quais aproximadamente 1.250 foram de bicicleta. As demais distâncias foram trechos em que optei por ir de ônibus e para as travessias de túneis. Isso sem contar as balsas, foram muitas balsas.
Pedalar pela Noruega é assim: normal. Sem precisar brigar. Sem capacete. Sem militância e sem insegurança. Simplesmente normal, como caminhar. Aqui todo mundo pedala. Não importa a idade, a religião ou o que diz a previsão do tempo. Por sinal, os primeiros dez dias que passei no país foram de chuva e mais chuva.
As cidades são lotadas de paraciclos, e os paraciclos são lotados de bikes. É gente treinando, passeando, indo trabalhar, levando os filhos na escola, indo ao mercado. Tem de tudo e tem todo tipo de bike, incluindo algumas elétricas. Cidades funcionais, belas e que não sabem o que é engarrafamento. Entendo que o índice demográfico contribui para isso, mas de qualquer forma, é surpreendente observar o quanto a bicicleta está presente na vida do norueguês, dadas as condições climáticas e o relevo acentuado do país.
Civilidade e segurança
É um nível de civilidade e educação que surpreende qualquer paulista, mesmo os bem educados, como eu (às vezes) me considero. No meu primeiro dia em Bergen atravessei a rua antes do farol abrir e imediatamente recebi olhares com balõezinhos que diziam: “de onde veio esta neandertal?”
Nem preciso dizer que foi a primeira e última vez que dei uma de espertinha. Moral da história: a educação e senso de espaço comum da maioria inibem qualquer ação da minoria folgada (eu).
da maioria inibem qualquer ação
da minoria folgada
E a segurança não se resume a quando você está em movimento. Não é raro ver bicicletas encostadas sem nenhum tipo de corrente ou cadeado, e elas são belas, ainda assim, ninguém se atreve. Em Odda parei para almoçar, sentei e comecei a observar: de todas as bikes paradas na frente do café (e eram muitas), a minha era a única com corrente, fiquei constrangida e com vontade de dizer: “Pessoal, I’m so sorry, but eu sou de São Paulo!”
Aprendizado
Estou só de passagem por estas paisagens. Uma observadora silenciosa que passa, invisível, pela rotina alheia. A Noruega é muito mais do que eu esperava. É muito mais do que peixe defumado no café da manhã. Mais que belos fiordes por onde despencam cachoeiras. Mais que pontes cinematográficas, túneis e balsas. Mais do que gente bonita e muito, muito loira.
A Noruega é uma aula de cidadania. Onde o coletivo SEMPRE tem prioridade sobre o individual. Onde há respeito sem pressa. Confiança sem malícia. Qualidade de vida sem ostentação. E principalmente, onde todo boteco tem vinho!
Fico pensando no quanto somos “frutos do meio”. Por que conseguimos nos comportar de forma tão civilizada, tão educada, quando o ambiente favorece? Será que meu comportamento continuará sendo de tranquilidade, tolerância e generosidade quando voltar a pedalar pelas ruas agressivas de São Paulo? Espero que sim. Espero que eu possa levar comigo tudo que tenho aprendido. Não racionalmente, mas no instinto. Nas reações que temos quando não há tempo para pensar e analisar.
Pois saber é fácil. Difícil é fazer a transição entre o saber e o ser!
Esta é a diferença que vejo aqui. Os conceitos de cidadania e espaço público não são conceitos. Eles estão no DNA das pessoas. Elas não precisam de tempo para pensar antes de agir. Elas agem simplesmente. E é belo de assistir.
O carro que vem na estrada breca ao invés de acelerar, quando nota que o ônibus deu pisca para voltar para a pista. Todo e qualquer veículo para quando há um pedestre querendo atravessar. Se você pede para descer na estrada e demora dez minutos para tirar a bike do ônibus, ninguém acha ruim, nem o motorista, que é o primeiro a se oferecer para ajudar. Acima das regras, do que diz a placa, de onde termina a faixa do acostamento, acima de tudo isso existe o respeito e a real capacidade de se colocar no lugar do outro.
E aí, os mais cínicos podem dizer: “gostou tanto, muda prazuropa então!” Já morei na Europa, durante muitos anos, e fui muito feliz. Até o dia em que uma pessoa muito amada me disse: “a Europa não precisa de você, o Brasil precisa!”. Foi quando resolvi voltar.
Não estou fazendo comparações, sei que somos consequência de nossas histórias e cada país tem a sua. Mas gosto de pensar que, para nós, brasileiros, é apenas uma questão de tempo. Que estamos no caminho certo e que nossa pátria, um dia, oferecerá a mesma dignidade e qualidade de vida para todos os seus cidadãos! E que eu consiga, de alguma forma, mudar e dividir tudo que estou absorvendo. Porque a mudança nunca está no outro, mas deve acontecer dentro de cada um de nós.
Raquel Jorge fez uma cicloviagem de 6.200 km pela Europa, contornando o Mar do Norte e passando por Noruega, Suécia, Dinamarca, Alemanha, Holanda, Bélgica e Inglaterra. E ela conta os detalhes aqui no Vá de Bike, da preparação aos desafios do caminho, com dicas para quem tem vontade de ganhar o mundo e informações sobre a mobilidade nos locais onde passou. Veja o que ela publicou por aqui.
OU leio estes relatos e fico a pensar quando um país que nem o Brasil que é considerado o 5º maior do mundo em extensão ira mudar e se tornar um país belo de se morar que da vontade de viver aqui, no momento não vejo grandes mudanças mas quem sabe no futuro.
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O Brasil precisa de mais pessoas com senso de coletividade! Ótimo texto aliás 🙂
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Gostei do relato. Principalmente nas partes onde diz “Sem militância e insegurança” , ” Onde o coletivo SEMPRE tem prioridade sobre o individual”.
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Também sempre que posso estou vendo e lendo suas belas historias, queria ser e ter sua coragem, deixa muito ‘machão”porai de queixo caido. Eu queria um dia ser este passarinho livre que é você. Que Deus continue protegendo você em teus caminhos.
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Prezada Raquel,
Sua manifestação confirma que a mobilidade efetiva e fácil de alcançar é aquela que não depende das intervenções do governo ou de sanções, mas da educação das pessoas. É só lembrar que a distância do velho mundo para o Brasil é comparável ao fato de que, enquanto Cabral trocava espelinhos com os índios, Da Vinci projetava helicópteros. Só isso já dá uma noção do tempo que pode demorar para os brazucas se tocarem. A mudança de comportamento é uma questão de sobrevivência social essencial e urgente. já que os holandeses não conseguiram conquistar o Brasil, aproveite seu tempo de Noruega.
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Belo e inspirador relato, Raquel. Aliás, inspiradores! Estou te acompanhando aqui de Sampa e curtindo muito seus textos. Obrigado. Boa viagem!!
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Lendo, acompanho a viagem e fiquei muito feliz com a profissão de fé: “Estamos no caminho. . .” Parabéns.
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