Mutilado por vereadores, Plano Cicloviário de Porto Alegre terá menos fontes de recursos
Ignorando demanda da sociedade, vereadores aliados defendem posição da Prefeitura, garantindo também poder de decisão do Executivo sobre a aplicação dos recursos.
Sob forte crítica de usuários da bicicleta e organizações da sociedade civil, a Câmara Municipal de Porto Alegre aprovou na quarta-feira, 21/05, o projeto de Lei Complementar do Executivo que cria o Fundo Municipal de Apoio à Implantação do Sistema Cicloviário (FMASC). O projeto revogou o dispositivo que determinava a utilização de 20% do valor arrecadado com multas de trânsito para a construção das ciclovias previstas no Plano Diretor Cicloviário Integrado (PDCI) e campanhas de educação para o trânsito contemplando o modal bicicleta.
A aprovação do projeto marca uma batalha iniciada em 2011, quando a comunidade ciclista começou a questionar a falta de investimentos do Governo Municipal em campanhas e ciclovias, que ganhou espaço sob os holofotes após o atropelamento proposital da massa crítica, em fevereiro daquele ano.
A pressão de cicloativistas e o constrangimento de parte dos vereadores governistas em concordar com a retirada de recursos (já que a determinação do uso das multas foi aprovada por vários dos vereadores da situação, já naquela época), fez com que o projeto ganhasse diversas emendas que amenizassem a rejeição dos aliados da prefeitura. Uma delas foi criada pelo vereador Cássio Trogildo (PTB), responsável por “maquiar” os recursos para o PDCI. A emenda cita os 20% das multas como um indexador, mas na verdade as verbas virão de outras fontes, como do próprio orçamento municipal, ou dos governos estadual e federal. Essas verbas são abatidas do valor equivalente aos 20% das multas, o que, na prática, diminui o leque de recursos disponíveis.
A emenda também prevê que, se os investimentos realizados não atingirem o valor previsto pelo indexador, o restante poderá vir diretamente das multas. Antes da emenda, no entanto, as multas eram apenas um dos recursos disponíveis para a execução do Plano. As outras fontes citadas, além de contrapartidas financeiras a grandes obras, complementavam as verbas aumentando a disponibilidade financeira até que fosse concluído o PDCI.
Em discurso na tribuna da Câmara, uma das vereadoras contrárias ao projeto, Fernanda Melchionna (PSOL), contestou os argumentos de Trogildo para defender sua emenda: “Se, por fim, há possibilidade de usar recursos das multas, por que mexer na lei já existente?”, questionou.
Prefeitura é quem decide
O projeto aprovado ainda tem um agravante: quem terá o maior poder de decisão sobre o destino do dinheiro será a administração municipal, pois o conselho responsável pelo fundo criado para gerir o dinheiro do Plano Cicloviário terá apenas dois representantes dos cidadãos e sete membros do poder executivo. O conteúdo é diferente de outro projeto, de autoria vereador petista Marcelo Sgarbossa, que previa a criação de um fundo com composição paritária (com mesmo número de membros da prefeitura e da sociedade civil) e que não comprometia a garantia de recursos vindos das multas. Porém, o projeto foi rejeitado em 12 de maio, em uma votação repetida, depois de já ter sido aprovado em votação simbólica no dia 14 de abril, realizada em concordância com uma decisão da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.
Nova emenda pode piorar a situação ainda mais
Sem ter entendimento entre os vereadores na sessão que aprovou o FMASC, uma nova emenda agrava ainda mais a situação do Plano Cicloviário no que tange à obtenção de recursos para sua execução. A emenda 18, de autoria do também vereador governista Airto Ferronato (PSB), prevê o aumento do número de integrantes da sociedade civil no conselho gestor do fundo. No entanto, determina também a divisão dos recursos previstos (equivalentes a 20% das multas) em campanhas que priorizem o pedestre e a acessibilidade universal, reduzindo ainda mais o montante disponível para a execução de ciclovias e realização de campanhas.
Outras emendas incluídas no projeto aprovado referem-se à implementação de ações de segurança e educação no trânsito nos estabelecimentos de ensino de Porto Alegre, à apuração e divulgação dos valores arrecadados em multas, bem como o indexador de 20% no Diário Oficial do Município e os valores efetivamente investidos nos itens obrigatórios do Plano Cicloviário. Foi determinada também, a cada três anos, a reavaliação do Plano Diretor Cicloviário Integrado, contando a partir do primeiro semestre de 2015.
Um histórico de negligências
Considerado um retrocesso pela comunidade ciclista de Porto Alegre, a “mutilação” dos recursos do Plano Cicloviário é a cereja do bolo de uma série de fatos negativos envolvendo a prefeitura de Porto Alegre em relação ao transporte por bicicleta, a despeito da execução de 20,5km previstos no Plano Cicloviário, que entrou em vigor em 2009. Desde a aprovação da emenda que previa a garantia de recursos para o PDCI, a prefeitura de Porto Alegre deveria ter destinado um total de R$ 10.865.138,20 somente nos primeiros três anos em que utilizou, respectivamente, apenas 5,71%, 8,71% e 8,98% do montante devido.
Posteriormente, a prefeitura entrou na Justiça alegando a inconstitucionalidade do dispositivo com o argumento que o Legislativo não tem o poder de determinar o destino de verbas do orçamento municipal, de competência do prefeito (e, justamente agora, no projeto aprovado, prevê que parte dos investimentos em ciclovias venham do orçamento municipal). No entanto, a Justiça entendeu que os valores das multas não fazem parte do orçamento e condenou a prefeitura ao pagamento retroativo dos valores devidos. Após essas tentativas, o executivo finalmente conseguiu mudar a lei que se recusou a cumprir.
Essa negligência tem custado vidas. Os casos mais chocantes aconteceram em março, quando as estudantes Patrícia Figueiredo e Daise Lopes foram mortas no mesmo dia, em locais diferentes da cidade, atingidas por motoristas de ônibus que prestam serviço à própria prefeitura. Questionados por membros da Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta (Mobicidade), alguns motoristas relataram que nunca haviam recebido cursos de reciclagem voltados à convivência com ciclistas, o que só começou a acontecer depois da tragédia.
A cidade toda perde
Presentes em todas as sessões da Câmara desde o dia 2 de abril, quando o PLCE 010/13 começou a ser debatido pelos vereadores, ciclistas de Porto Alegre e representantes de organizações da sociedade civil reprovam as manobras feitas pelo executivo e vereadores para diminuir os recursos do PDCI. Para o presidente da Associação dos Ciclistas de Porto Alegre (ACPA), Pablo Weiss, é um absurdo que os representantes da população votem de acordo com conveniências político-partidárias em vez de pensar no bem estar da população e da cidade. “Qual vereador, em plena consciência, votaria contra a reserva de verbas para campanhas de educação e ciclovias, ou seja, para o fomento de um modal de transporte limpo e saudável? Certamente não pensam no bem das futuras gerações, mas sim em vantagens para seus partidos ou ‘apoiadores’”, critica.
Para Artur Elias, integrante da Mobicidade, esse tipo de conduta por parte de nossos governantes e representantes confirma um precedente grave. “Eles podem burlar, passar por cima ou, caso necessário, mudar a lei conforme lhes der na veneta. Passam a mensagem de que ‘legalidade é para os fracos, cumpre a lei quem é bobo ou não tem os meios para ignorá-la’”, adverte. Para Artur, “isso seria o mesmo que alguém com 30 pontos na CNH, que deve uma grana em multas e deve perder a habilitação, buscar e encontrar uma maneira de burlar ou mesmo manipular a lei a seu favor. É isso que fazem cotidianamente contraventores e ‘espertos’ de todos os tipos. O governo municipal acaba de fornecer um modelo e uma referência para a cultura da esperteza e da contravenção”, conclui.
Quem votou?
O Projeto de Lei Complementar do Executivo 010/13 foi aprovado com o voto favorável de 20 vereadores da situação, oito votos contrários da oposição e três abstenções (também de governistas). Os vereadores, com seus respectivos votos, são estes:
Sim | Não |
---|---|
Reginaldo Pujol (DEM) | João Derly (PC do B) |
Delegado Cleiton (PDT) | Jussara Cony (PC do B) |
Dr. Thiago (PDT) | Fernanda Melchionna (PSOL) |
Márcio Bins Ely (PDT) | Alberto Kopittke (PT) |
Mario Fraga (PDT) | Engº Comassetto (PT) |
Idenir Cecchim (PMDB) | Marcelo Sgarbossa (PT) |
Professor Garcia (PMDB) | Mauro Pinheiro (PT) |
Guilherme Socias Villela (PMDB) | Sofia Cavedon (PT) |
João Carlos Nedel (PMDB) | Abstenções |
Kevin Krieger (PMDB) | Valter Nagelstein (PMDB) |
Mônica Leal (PMDB) | Tarciso Flecha Negra (PSD) |
Any Ortiz (PPS) | Cláudio Janta (SDD) |
Séfora Mota (PRB) | |
Waldir Canal (PRB) | |
Airto Ferronato (PSB) | |
Paulinho Motorista (PSB) | |
Mario Manfro (PSDB) | |
Alceu Brasinha (PTB) | |
Cassio Trogildo (PTB) | |
Elizandro Sabino (PTB) |
Simplesmente lamentável esse retrocesso. Alguns vereadores como Dr. Thiago (PDT) e Séfora Mota (PRB) tinham garantido votar pela manutenção dos 20% das multas (tenho inclusive email do Thiago me garantindo isso). É aquela velha pressão do executivo sobre a base aliada na parlamento da nossa política no Brasil. O que podemos fazer agora é não deixar esse episódio cair no esquecimento e mostrar claramente para a população quem votou contra e quais as consequências futuras disso para a cidade.
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