Caso USP: foi correto associar as mortes ao fechamento?

(publicado em 23 de maio de 2005)

Muita gente, mesmo no meio ciclístico, tem questionado o uso das mortes dos ciclistas como estopim para a manifestação do dia 20/05. Argumenta-se que isso foi uma manipulação dos fatos, já que uma das vítimas, por ser professor da USP, poderia entrar lá de bicicleta quando quisesse.

Concordo. E ele não só podia estar lá quando quisesse como havia conseguido a liberação de um grupo de cerca de 40 ciclistas para treinar lá dentro, com a desculpa de que faziam parte de um estudo que ele estava fazendo. Se eles precisavam mesmo treinar lá dentro por causa desse estudo, não faz a menor diferença. O tal professor estaria na estrada naquele dia, estando a USP liberada ou não.

Já a outra vítima, eu não sei. Talvez estivesse na estrada, mas talvez estivesse pedalando na “segurança” da cidade universitária se a situação do campus fosse outra. Portanto, pode-se dizer que há a possibilidade dele ter morrido sim em conseqüência do fechamento da USP aos ciclistas em geral (chega de dizer que é só aos ciclistas-atletas pois todos sabem que isso é balela).

Entretanto, mesmo que o outro ciclista também fosse estar na estrada caso a USP estivesse aberta e, portanto, sua morte não tenha nenhuma relação com o fechamento, ainda acho legítimo colocar em evidência o acontecido, desde que o objetivo seja mostrar que treinar nas estradas é perigoso. Mesmo que o ocorrido não seja conseqüência da decisão do prefeito, é inegável que ao menos parte do pessoal que treinava forte na USP *está* treinando na estrada. E a estrada é perigosa, como mostraram os dois acidentes que por coincidência ocorreram no mesmo dia.

E mais legítimo ainda é brigar pela liberação. Eu fiz um mestrado na USP, mas mesmo assim não posso entrar lá de bicicleta (supondo que isso realmente me fizesse diferente dos outros). Um motorista qualquer que queira cortar caminho por ali de carro, pode. Um outro josé qualquer que quiser entrar ali à pé, escondendo uma arma debaixo da jaqueta para fazer seqüestro-relâmpago de aluno, também pode. Isso é o fim da picada. O argumento para impedir minha entrada é uma afronta e uma demonstração de preconceito e intolerância.

Estão dizendo que eu não posso entrar lá porque eu tumultuo, eu coloco em risco as outras pessoas, eu sou um perigo, uma ameaça, um marginal. Estão colocando todos os ciclistas nesse patamar. Os atletas profissionais, quem pedala por lazer, quem vai trabalhar de bicicleta, eu, o meu filho, os meus amigos. Não tem como não levar isso para o lado pessoal. Isso é um insulto, um crime de discriminação (Lei 7.716 de 5/1/89, Art. 11). Isso é uma ofensa a meus direitos civis me soa quase como uma declaração de guerra.

Ah, mas o Gegê não! Aceitando o discurso do tal prefeito, que se propaga pelos alunos e funcionários, como o Gegê era professor ativo da USP, ele sim era civilizado. Ele podia pedalar lá dentro. Eu, não. Um aluno com carteirinha também é civilizado, ele está estudando na USP esse ano e pode pedalar lá dentro. Eu, não. Seria irônico, até divertido, se por coincidência do destino os maus elementos do pelotão que causou a irritação da administração da “cidade” fossem alunos ativos da USP.

E digo mais, mesmo correndo o risco de ser tomado como incoerente e reacionário: se com argumentos racionais, diplomacia, negociação, intermediação do governo do estado, propostas razoáveis e paciência não há nenhum resultado, se não vimos a administração da Cidade Universitária aceitar negociar, nem ao menos ceder um pouco que seja, não sei se seria tão reprovável assim partir para um argumento fraco que apele para a emoção, deixando a lógica de lado. Afinal, é isso que o tal prefeito tem feito desde o início. Ele pode?

O prefeito se recusa a negociar, a tentar um acordo, a levar a sério ao menos uma das dezenas de propostas que já apareceram, por mais boa vontade que demonstremos. Muitas das propostas inclusive seriam ruins para os ciclistas, mesmo assim estamos dispostos a ceder. Isso é saber negociar. O homem que se diz prefeito não parece saber negociar. Ou, pior, talvez ele saiba negociar muito bem, mas ache que nós, meros ciclistas, fanfarrões, marginais, não merecemos negociação. “Aos ferros com eles”, diria ele em outros tempos.

O ruim das manifestações pontuais é que no dia seguinte tudo volta a ser como era antes e voltamos a ser ignorados. Deveríamos organizar uma manifestação pacífica, ostensiva e contínua. Seria importante marcar presença ali na entrada, tendo sempre algum ciclista parado por ali, sempre com uma faixa, fazendo panfletagem, algo que chame atenção, que mostre que não desistimos e não desistiremos.

Acordem. Manifestem-se. Exijam seus direitos. Para ajudá-los a saberem quais são, cito abaixo algumas leis. E antes que me digam que na USP a polícia não pode entrar, eu já aviso que me recuso a acreditar que aquilo seja um feudo, com leis próprias. E antes que me digam que na USP o código de trânsito não vale, eu já aviso que me recuso a acreditar que que as placas de sinalização existentes ali sejam apenas parte da decoração do campus.

Se essas duas coisas acontecem, há algo de muito errado com a USP, que quer parecer um espaço público mas se porta como uma propriedade privada, na qual se faz o que bem entende e se selecionam os convidados com critérios subjetivos e pessoais.

—–

LEI Nº 7.716, DE 5 DE JANEIRO DE 1989 (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

[Nota: a lei dispõe sobre preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Entretanto, dizer que alguém é marginal por ser ciclista e impedir seu acesso com base nessa argumentação, é claramente uma forma de preconceito e discriminação.]

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito (…) Pena: reclusão de um a três anos e multa.
[Nota: com o decreto, está sendo praticada a discriminação; com declarações na mídia de que isso foi feito porque, em outras palavras, ciclistas em geral não prestam, é induzir e incitar]
(…)
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza [por exemplo, manifestando essa posição em entrevistas para jornais]: Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

—–

CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO

Art. 58. Nas vias urbanas e nas rurais de pista dupla, a circulação de bicicletas deverá ocorrer, quando não houver ciclovia, ciclofaixa, ou acostamento, ou quando não for possível a utilização destes, nos bordos da pista de rolamento, no mesmo sentido de circulação regulamentado para a via, com preferência sobre os veículos automotores. [em resumo, esse artigo dá direito à bicicleta de trafegar em vias urbanas, como o veículo que ela é]

—–

2 comentários em “Caso USP: foi correto associar as mortes ao fechamento?

  1. Faco engenharia na usp, e juntamente com um grupo estamos realiuzando um trabalho sobre transportes, na qual tomamos como tema as bicicletas, em especial a causa da proibicao da usp. Estaremos propondo alternativas para viabilizar a pratica ciclistica como esporte, em sua materia, vc cita ter varios projetos alternativos a situacao. é Possivel voce me enviar alguns deles para analisa-los e caso necessario coloca-los no trabalho.

    Thumb up 1 Thumb down 0

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *