A culpa é do pedestre
Matéria do jornal Bom Dia Brasil coloca a culpa dos atropelamentos nos pedestres
Em matéria veiculada hoje de manhã na Globo (assista aqui), foi passada a idéia de que quase todos os atropelamentos – dois por dia só na capital paulista – são por culpa dos pedestres. Enquanto eram exibidos comportamento de risco (ou suposto risco, já que as imagens só mostravam momentos selecionados e sem exibir toda a via), reforçava-se continuamente a quantidade de pedestres que morre no trânsito, dando a entender que a culpa de tantos atropelamentos é por atravessar fora da faixa ou com o sinal aberto para os carros.
É fácil perceber como a matéria foi produzida para conduzir o raciocínio do espectador. As imagens estão mostrando só gente atravessando na faixa (com o sinal aberto para os carros, mas na faixa). Então, por volta do 1 minuto de vídeo, a imagem mostra um monte de gente atravessando na faixa (câmera dentro do carro) e, logo depois da fixa, duas pessoas atravessando fora dela, com a locução dizendo que “pedestre raramente usa a faixa”. A locução continua: “…ou respeita o sinal”, mostrando uma única senhora atravessando no meio dos carros enquanto a maioria dos pedestres está aguardando para atravessar.
Fica muito fácil embasar um argumento ao exibir um vídeo junto. Você pega o pedaço de vídeo que te interessa e exibe junto com a locução que transmite a mensagem que você quer passar, reforçando o que foi dito, mesmo que não seja a exata reprodução da realidade.
Além disso, a matéria usa algumas estatísticas para comprovar o argumento, sem fazer nenhuma reflexão sobre elas. Ao 1 minuto e meio do vídeo, diz-se que os atropelamentos em Recife “cresceram mais de 13% em dois anos”. Mas em quanto aumentou a frota de veículos da cidade, nesse mesmo período? O que será mais provável: o aumento de veículos nas ruas ter contribuído para que ocorram bem mais acidentes, ou de dois anos para cá os pedestres terem começado a atravessar a rua como completos imbecis? Assim, de uma hora para outra? Um belo dia o cidadão acorda e fala “tomei uma resolução na minha vida: a partir de hoje não vou mais esperar o bonequinho verde”.
Ok, há razão em dizer que o pedestre está errado de cruzar uma rodovia pela pista, tendo uma passarela próxima (embora para muita gente seja questionável os pedestres terem que desviar bastante seu percurso para permitir a passagem dos carros, não o contrário). Mas vamos pensar: por que as pessoas não esperam o sinal abrir quando vão atravessar na faixa? Ora, todo mundo já atravessou a rua com o sinal aberto para os carros – tenho certeza que até mesmo os jornalistas que produziram e comentaram a matéria. Duvido inclusive que durante a produção da matéria a repórter e o câmera não cometeram a mesma infração em nenhum momento. Mas então por que as pessoas fazem isso?
Primeiro, porque se na hora que você vai atravessar não vem nenhum carro, ninguém vai ficar ali parado esperando o sinal abrir. Nem faz muito sentido: não vem carro, rua livre, para que esperar? Atravessar não vai colocar ninguém em risco. Não é como, estando de carro, passar um sinal fechado num cruzamento, pois mesmo não vindo carro um pedestre pode estar atravessando.
O segundo motivo é que se o sinal leva mais de 5 minutos para abrir, sejamos justos, não há pedestre que tenha paciência em esperar! Experimente fazer um sinal de trânsito que leve mais de 5 minutos para abrir para os carros, para ver se os motoristas têm paciência: será igualmente desrespeitado, resguardados os limites mínimos de segurança… Mas pedestre pode esperar, não é? Afinal, a prática contrariando a lei diz que a prioridade é dos carros.
Placa na Av. Paulista, pedindo para os pedestres esperarem os carros que não podem esperar |
É como naquele sinal na Av. Paulista, que tem uma placa ridícula no meio das duas pistas dizendo que ali deve ser feita uma “travessia em duas etapas”. O pedestre espera 5 minutos para o sinal abrir, atravessa até a metade e espera mais cinco minutos para poder terminar de atravessar. por que o pedestre esperar cinco minutos a mais para atravessar uma rua é algo aceitável, mas o motorista esperar 5 segundos a mais para que o pedestre atravesse a segunda pista, não é? Como isso pode ser normal? Como isso pode ser aceitável? É um completo absurdo! Aquela placa é uma afronta!
Então, no vídeo, vem a piada: “a secretaria de transportes achou melhor educar quem anda a pé”. Claro. Mais fácil que tornar as vias mais humanas, né? Mais fácil que inverter as prioridades. Mais fácil que fazer cidades para as pessoas. Mais fácil que lembrar que fora do carro, também somos pessoas.
A matéria mostra então a solução inteligente: um sinal de pedestres que mostra quanto tempo falta para fechar. Ora, mas não é para isso que o bonequinho vermelho fica piscando? Não é para avisar que o sinal vai fechar? E o código de trânsito não diz que os carros devem esperar que quem está fazendo a travessia termine, para que se uma pessoa com dificuldade motora estiver atravessando quando o bonequinho vermelho piscar, os carros aguardam que ela termine? Ou para que uma pessoa que começou a atravessar com o bonequinho verde aceso não precise sair correndo como se fugisse da morte iminente?
Já no final da matéria, quando disseram que a maioria das vítimas são idosos, eu tive uma ponta de esperança sobre um desfecho razoável para a matéria. Mas então o âncora reforça em tom de revolta que, na maioria dos casos, a culpa é do pedestre (e fica tentando fazer algumas ressalvas para justificar seus argumentos). Ah, esses perigosos velhinhos, que demoram para atravessar e colocam em risco os motoristas… Ele mal lembrou que também é da terceira idade. Provavelmente vai sempre de carro até a porta do local onde deseja ir, para não ter que atravessar nenhuma rua. Afinal, o trânsito é perigoso, que sorte a minha ter um carro!
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Parabéns. Mais um belo post.
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