Conheça o projeto “Rios e Ruas” e entenda a causa das enchentes em São Paulo
As constantes enchentes na capital paulista são resultado de décadas de “ocultamento” dos rios da cidade. Entenda como isso aconteceu e o que tem sido feito em outras cidades no mundo.
Todo verão a cidade de São Paulo é tomada por enchentes e alagamentos. Os noticiários mostram cenas de carros ilhados e submersos, pessoas sendo arrastadas, bairros inteiros inundados. Isso porque, no decorrer dos anos, governantes da capital optaram por um modelo de urbanização que abria espaço para os automóveis, canalizando ou asfaltando nossos rios.
Essa tendência se acentua a partir da primeira metade do século passado, quando temos as grandes intervenções urbanísticas acontecendo na cidade, como o represamento de rios para formar as represas Guarapiranga e Billings, a retificação e canalização dos rios Tamanduateí, Pinheiros e Tietê, e as obras de inversão do curso do Rio Pinheiros, com o objetivo de enviar a água serra abaixo para gerar energia em Cubatão.
A partir da década de 1940, intensifica-se o modelo de mobilidade que dá preferência aos automóveis, fazendo com que os fundos de vale passem a ser ocupados por grandes avenidas depois da canalização – e frequentemente o soterramento – dos cursos d’água. Podemos citar alguns exemplos, como a avenida Nove de Julho, sobre os córregos Saracura (sentido centro) e Iguatemi (sentido bairro), a avenida Pacaembu sobre o córrego de mesmo nome, a avenida 23 de Maio sobre o Itororó (sentido centro) e o Caaguaçu (sentido bairro), as avenidas marginais dos canais do Pinheiros, Tietê e Tamanduateí (avenida do Estado), a avenida Bandeirantes sobre o Traição, a Juscelino Kubitschek sobre o Sapateiro, a Cupecê sobre o Cordeiro, e assim com dezenas de outros soterramentos e canalizações.
O documentário abaixo, realizado em 2009 por Caio Silva Ferraz, vale cada minuto. Ele ajuda a entender melhor a história da urbanização da cidade e o processo de “ocultação” que sofreram os nossos rios.
O projeto “Rios e Ruas”
Foi do encontro de duas “águas” que nasceu o projeto Rios e Ruas: Luiz de Campos Jr, geógrafo, e José Bueno, arquiteto e urbanista, se conheceram em 2010 e uniram forças para “movimentarem” esses rios.
Luiz desenvolvia uma pesquisa sobre os rios ocultos na cidade há 17 anos, enquanto José vinha trabalhando com experiências vivenciais de aprendizagem multietárias em ambientes informais de educação. Quando apresentados, viram a oportunidade de combinar os dois trabalhos, presenteando cidadãos de São Paulo com seus conhecimentos e experiências.
Dentro do projeto cabem expedições, oficinas, palestras e jogos. Um grande quebra-cabeça com o mapa dos rios da cidade é montado em algum canto da cidade, situando os ouvintes e fazendo-os entender um pouco sobre a geografia do espaço urbano. Num desses encontros, realizado na Praça do Ciclista, o Vá de Bike esteve presente e conversou com Luiz e José.
Assista à entrevista e veja algumas imagens de como eram os nossos rios antes de serem canalizados ou poluídos:
O que outras cidades do mundo têm feito
Outras cidades já passaram pelo mesmo processo e agora tentam reverter esse caminho. Na Europa, o Tâmisa, em Londres (Inglaterra), o Sena, em Paris (França) e o Tejo, em Lisboa (Portugal) foram despoluídos. O último terminou o processo em 2012. Os canais de Copenhagen, na Dinamarca, foram despoluídos e a área ao redor foi revitalizada, tornando-se o principal atrativo da cidade no verão.
No vídeo abaixo, feito pela jornalista Natália Garcia, do projeto Cidades para Pessoas, é possível ver a transformação que a cidade dinamarquesa sofreu e as soluções que foram usadas para resolver o problema: vontade política, um bom uso do orçamento e o desejo de tornar a cidade mais agradável aos moradores. A meta era de que, em 2015, 80% dos cidadãos estivessem satisfeitos com o aproveitamento dos espaços públicos. Quando o vídeo foi gravado, em 2011, 89% da população já se mostrava satisfeita com as mudanças.
O mais impressionante, no entanto, foi o que fizeram em Seul, capital da Coreia do Sul: em julho de 2003, o governo da cidade implodiu um viaduto que ficava sobre o rio Cheonggyecheon, antes degradado, e o recuperou, revitalizando seu entorno e fazendo com que se transformasse num parque linear, ponto de encontro e lazer para para os habitantes da capital sul-coreana.
Nesta reportagem é possível saber mais sobre a despoluição de rios em oito cidades do mundo.
Rios soterrados e falta de questionamento
Segundo Luiz, do Rios e Ruas, São Paulo tem exemplos de como é possível recuperar rios. Uma das formas é a criação de parques lineares. “Até mesmo a ‘renaturalização’ pode ser implantada em alguns casos. O córrego Pirarungauá, que esteve mais 60 anos tamponado numa galeria e que hoje é uma das atrações principais do Jardim Botânico é prova disso”, conta o geógrafo.
O trabalho de “renaturalização” desse trecho do córrego levou pouco mais de um ano, a um custo muito baixo se considerado o ganho ambiental e social – o parque multiplicou várias vezes o número de visitantes depois do ressurgimento do córrego.
Para Luiz, o fato de os rios estarem soterrados não permite que os habitantes da cidade tenham conhecimento sobre eles e evita o questionamento da população. É nessa hora que o “Rios e Ruas” faz o seu trabalho: o de divulgar e conscientizar as pessoas da importância desses rios para a cidade. “Essa miopia, esse desinteresse, essa falta de percepção minha é a mesma de todos os paulistanos que foram educados a não ver, a não perceber, a não se interessar, a não cuidar “, diz José Bueno. Ele fala a emoção que sentiu no dia em que descobriu um rio no bairro em que morava há 10 anos, numa rua onde passava todos os dias. “A emoção foi tão forte de ver esse rio, de ver como o rio é escondido e como essa realidade é roubada, que nós resolvemos contar essa história”.
Em entrevista à jornalista Natália Garcia, Jan Gehl, o arquiteto e urbanista que transformou Copenhagen numa cidade para pessoas, disse que “ninguém pede por algo que não conheça”. “Quando você perguntar a uma criança o que ela quer ganhar no Natal”, continua o arquiteto, “ela fará uma lista das coisas que ela conhece. Ela não pedirá uma coisa que não conhece. Então a primeira coisa é as pessoas saberem disso para saberem o quão incríveis as cidades podem ser”.
Já imaginou quão incrível poderiam ser nossas cidades se a limpeza dos rios passasse a ser prioridade na agenda dos gestores públicos?
Eu tenho uma história semelhante em relação aos córregos e fontes … a 1km de casa tem uma fonte na divisa de Osasco e São Paulo, ao lado do Terminal de ônibus Vila Yara, e, muita gente não percebe isto. Descobri há mais de 10 anos atrás, e, durante este tempo tenho acompanhado a evolução deste córrego. Às vezes atuando na denúncia de que este córrego estava sendo degradado com o despejo de águas de lava-carros, pois em um momento a água estava toda esbranquiçada, e tomei uma atitude de enviar um e-mail para a Secretaria de Meio Ambiente. Aparentemente, resolveu, pois a poluição desapareceu. Contudo, mais à frente quando chega a Estação Presidente Altino, a água está totalmente turva, com certeza tem esgoto clandestino sendo despejado, possivelmente do contomínio de prédios perto da estação.
Como foram ditos pelos vídeos, foi idéia de um prefeito que começou esta anormalidade em São Paulo.
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Esse assunto é de extrema importância.
São Paulo se gaba por ser o centro econômico do Brasil, porém é uma das cidades com a pior qualidade de vida do mundo para seus moradores. Isso se deve em boa parte ao mau tratamento que damos a nossos rios e córregos.
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Poxa. A comunidade da Saracura(VAI-VAI) podia bem fazer um samba enredo sobre este tema!
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Parabéns pela grande pertinência da reportagem.
Sou arq. urbanista e entusiasta da integração dos modais em mobilidade urbana.
Fico orgulhoso de ser leitor deste site.
Parabéns a todos que fazem este meio de comunicação competente e ao mesmo tempo leve.
Forte abraço.
Flavio Rocha
Comentário bem votado! 5 0
A equipe agradece, Flavio! 😀
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Nossa, que ironia…
Vendo a reportagem sobre a experiência de Seul, acho que esse seria o modelo de revitalização mais próximo aplicável em Sampa, tanto para os rios “marginais“ como para a malha de córregos e os outros rios que “abastecem” os primeiros, mas…
Meu, mas depois dos investimento e do trabalho de um século pra tapar tudo e, no duplo sentido, esgotar a hidrografia daqui, já pensou a grana e o trampo necessários pra revitalizá-la?
Eis então a ironia: precisaríamos de um pool de construtoras agora pra fazer a desconstrução, muito jogo de cintura pra fazer descer garganta abaixo da sociedade o tanto de desapropriações inevitáveis e… e portanto um quê de espírito de porco malufista pra conseguir levar a coisa adiante.
(Ouch!)
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