São Paulo já está se transformando em uma cidade para bicicletas (e pessoas)
Numa tarde trafegando pelas novas ciclovias paulistanas, as cenas encontradas pelo caminho mostram que a cidade está mudando mais rápido do que se esperava.
Essa semana tive um compromisso na Barra Funda, zona oeste da cidade. Saindo da Saúde, na zona sul, fui e voltei pelo Centro, passando por quase todas as ciclovias existentes nesse percurso. Tive a felicidade de poder trafegar sobre o tapete vermelho em uns 80% do trajeto, que somou cerca de 30 km ida e volta – algo impensável dois meses atrás.
Em todo o caminho, não encontrei nenhum carro estacionado sobre as ciclovias. E só tive um único stress com um motociclista, que por sinal não era um motoboy: era um homem que parecia ter uma boa condição financeira (provando que dinheiro não compra educação), pilotando uma moto importada, daquelas que não cabem no corredor entre os carros. Ele se achava no direito de usar a ciclovia por conta disso. Aconteceu na Vergueiro, no topo da subida, pouco antes do Centro Cultural, local onde antes havia uma motofaixa. O homem de sapatos caros ficou acelerando a moto atrás de mim, com aquele ronco grosso e ensurdecedor, querendo que eu saísse da frente. Dei uma olhada bem devagar por cima do ombro, com uma calma de psicopata, e me posicionei mais ainda no meio da ciclovia. Ele deu mais uma rosnada de motor e eu sinalizei pra ele entrar no meio dos carros, porque dali eu não iria sair. Ele se tocou e parou de me ameaçar. Achei que tentaria me agredir ao passar, mas esperou abrir um espaço na faixa ao lado e ultrapassou a uma distância adequada, sem nem ao menos reclamar. Ainda assim, voltou para a ciclovia alguns metros adiante.
Mais nenhum motociclista tentou passar junto comigo na ciclovia o caminho todo, na ida e na volta, mesmo sendo horário de pico no meu retorno, com tudo congestionado. Um cenário bastante diferente de uma semana antes e, sem dúvida, uma mudança muito rápida. Sem contar que poder dizer “um único stress” em um caminho tão longo, ida e volta, é muito significativo para quem já pedala nessa cidade há quase 15 anos.
Encontrei uma moça empurrando um carrinho de bebê na ciclovia, ao lado do Teatro Municipal. Ela fez menção de sair para a rua, mas falei que podia ficar. Sei como as calçadas são ruins para empurrar um carrinho de bebê e não era incômodo para mim ultrapassá-la naquele trecho bidirecional. Logo adiante, um cadeirante sendo empurrado por outra pessoa. Sorriram para mim, retribuí e dei boa tarde, também sorrindo. Estavam ali pelo mesmo motivo da mãe com o bebê. E não os culpo, acho válido compartilhar esse espaço com eles. Eu provavelmente faria a mesma coisa se minhas duas rodas também fossem paralelas. As ciclovias representam um espaço seguro e bem pavimentado também para cadeirantes, que até então tinham que se virar usando calçadas com degraus e tendo que descer eventualmente para o asfalto, onde eram ameaçados por motoristas. É algo que temos que compreender e respeitar enquanto não tivermos calçadas que atendam a todos.
Claro, vi muitos ciclistas, de todos os tipos. Adolescentes, idosos, trabalhadores, esportistas; bicicletas simples, caras, elétricas, triciclos; as brilhantes, as sujas (a minha estava nessa categoria) e as enferrujadas; pais levando crianças para casa na cadeirinha depois da escola; um barbudão com um tipo de baú na traseira do triciclo, levando um instrumento musical grande dentro (não entendi o que era porque estava numa capa); o rapaz levando uma moça sorridente, sentada de lado no top tube da bicicleta simples; e muitas, muitas cargueiras, levando pão, carnes, galões de água e muito mais. Em comum a todas essas pessoas, a bicicleta, o veículo que iguala e humaniza – como afirma há anos Enrique Peñalosa, ao dizer que as ciclovias mostram que “um cidadão numa bicicleta de US$ 30 é tão importante quanto um cidadão num carro de US$ 30 mil”.
E encontrei também o senhor da foto que abre essa matéria, carregando flores, plantas e até mudas de árvore para vender. Isso foi na R. do Bosque, na Barra Funda – aquela onde comerciantes reclamaram tanto da ciclovia e insistiam em parar seus carros sobre ela. No momento em que o fotografei, ele tinha tirado as mudas da traseira da bicicleta para mostrar a um rapaz de roupa social que se interessou por elas, saindo de uma empresa em frente – cena impensável antes da ciclovia. “Posso tirar uma foto?”, perguntei. “Pode! No meio do verde, todo mundo fica bonito!”, brincou, em sua simplicidade, com o sorriso e a simpatia que são a maior propaganda de seu negócio.
Bonito é ver gente como ele ocupando a cidade, trafegando com segurança e, finalmente, tendo sua vida respeitada ao usar as ruas com toda a carga que carrega (na bike, nos ombros, na vida). É ver pais e mães levando as crianças. Idosos se deslocando em bicicleta. Pessoas indo ou voltando do trabalho. Jovens ocupando seu tempo com as pedaladas. Gente leve passeando durante o dia.
Estamos caminhando pedalando em direção a uma cidade muito, mas muito melhor. São Paulo já começou a se transformar em uma cidade receptiva às bicicletas, basta ter olhos para ver. Uma mudança ainda lenta e sutil, mas que já começou, será irreversível e acontecerá de forma bastante visível nos próximos anos – especialmente se essa política de proteção e valorização do ciclista continuar.
Preparem-se, pois o tempo das bicicletas finalmente chegou nessa cidade e alcançará todo o país. Faça parte dessa mudança: pedale.
Veja 18 razões para apoiar a implantação de ciclovias
É muito legal ver a cidade caminhando nesse sentido…ser uma cidade mais democrática e mais agradável…como foi dito é um caminho longo e lento, mas se todo mundo colaborar a gente chega lá, com os erros e acertos. Atualmente eu uso muito a ciclovia da Marginal, é uma pena que ainda tenha poucas entradas, poderia ter pelo menos uma entre a Santo Amaro e a Vila Olímpia…mas quem sabe um dia…rs
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