Foto: Augusto Schmidt

Por que a certificação para ciclistas em BH é uma péssima ideia

Chamada pela imprensa de “CNH para ciclistas”, certificação pode se tornar obrigatória. Entenda por que isso viria a ser péssimo para a bicimobilidade.

Foto: Augusto Schmidt
Ciclistas pedem ciclovias, em apoio às manifestações de São Paulo, no final de março: bora lá todo mundo pro curso, vocês são um perigo pedalando. Foto: Augusto Schmidt

Hoje, 12 de maio de 2015, as belo-horizontinas e seus (im)pares acordaram com uma notícia do jornal Hoje em Dia que veio diretamente da Câmara Municipal de Belo Horizonte​. Ela trata do projeto de lei 1.500/2015 do vereador Daniel Nepomuceno​ (PSB). O projeto iniciou sua tramitação em 31 de março e no dia 11 deste mês foi aprovado pela Comissão de Desenvolvimento Econômico, Transporte e Sistema Viário. Ele visa instituir um curso de capacitação para usuários de veículos de propulsão humana (bicicleta, handbikes e similares). Um pouco antes, em abril, ela foi aprovada pela Comissão de Legislação e Justiça.

Ao contrário do que foi dito pelo título da matéria do jornal, o vereador não quer obrigar ciclistas a terem uma CNH, mas, sim, passar por uma capacitação com necessidade de aprovação.

Sem entrar na discussão sobre a capacidade de cada vereador julgar um projeto como esse (e outros tantos!) e do próprio Nepomuceno de propor algo nessa seara, vamos focar no texto e forma do projeto.

No seu artigo 1º, o PL 1.500 afirma que o projeto ‘institui o curso para capacitação de usuários de veículos de propulsão humana do tipo bicicleta, handbikes e similares’. Se pegarmos legislações já aprovadas e regulamentadas, como o Código de Trânsito Brasileiro, veremos que existem algumas outras possibilidades de transportes à propulsão humana: skate, patins e patinete são três exemplos básicos.

Imagine você, skatista ou não, patinador ou não, ter que passar por um curso de duração mínima de 30 horas (!!!) para dar um ‘rolé’ de skate pelo bairro ou pelo parque. Soa estranho, né? Ainda estamos no artigo 1º.

O artigo 2º diz que o curso será oferecido gratuitamente pela prefeitura de Belo Horizonte ou através de parcerias e convênios com entidades sem fins lucrativos. Ora, todos sabemos que a prefeitura não oferece nada de graça. Nós, cidadãs e cidadãos de Belo Horizonte e do Brasil, pagamos tributos e encargos que são, de n formas, direcionados aos municípios. Logo, não será de graça, mas, digamos, um serviço ‘pré-pago’, como outros.

Cenários

Pense em uma criança que queira dar uma voltinha na sua rua com seu modo de transporte (colorido!), sozinha, com amiguinhos ou a mamãe. Agora, pense nessa criança, que ainda não foi alfabetizada completamente, tendo que ir parar dentro de uma sala de aula para estudar “legislação de trânsito, primeiros socorros, segurança no trânsito e cidadania (itens previstos no CTB)”, com um monte de adulto, por uma razão simples: queria pedalar na rua de casa. Ou andar de skate. Patins, talvez? Não! Era patinete!

Em seu artigo 4º, o vereador propõe que as pessoas precisam ter uma nota mínima de 75% para serem aprovados. Ok. Pensemos, agora, numa jovem de 17 anos que quer ir de bicicleta na casa de um amigo estudar para a prova da semana que vem. Bem, antes de estudar para a prova de história, geografia ou física, ela terá que investir 30 horas, no mínimo (vale ressaltar!), para estudar ‘legislação de trânsito, primeiros socorr…). Pronto, ela desistiu de ir de bicicleta e preferiu ficar em casa.

Ainda que não seja literalmente uma CNH, obrigar pessoas que querem pedalar a passarem por um curso certificante é uma forma clara de desestimular o uso das bicicletas enquanto modo de transporte por adultos.

Obrigar? O texto do PL é vago sobre a possibilidade deste curso ser obrigatório ou não. Dessa forma, durante sua regulamentação, tal obrigatoriedade poderia ser instituída. Além disto, ele deixa no vácuo várias outros caminhos que poderiam ser seguidos durante a regulamentação.

Em uma cidade cuja taxa de motorização (nº de automóveis por habitantes) é uma das maiores do Brasil (acima de São Paulo!), na qual o transporte coletivo ainda precisa melhorar muito e baratear, que sofre com índices de poluição alarmantes e outros tantos problemas vindos do uso do automóvel, desestimular o crescente uso da bicicleta através da obrigatoriedade da certificação é uma pedalada no caminho do retrocesso.

Foto: Paulinho Silva
Menina pedala com o pai, em uma rua tranquila de São Paulo. Para fazer o mesmo em Belo Horizonte precisariam obter um certificado? Foto: Paulinho Silva

Somente adultos pedalam?

Nas cidades que vêm dando exemplo sobre mobilidade urbana [sustentável], o direito à cidade também envolve outros atores que não adultos aptos a conduzirem um automóvel: bebês, crianças, jovens, pessoas com deficiências que podem usar transportes à propulsão huamana e etc. Uma criança, antes mesmo de aprender a ler e escrever com fluência, é capaz de se movimentar sozinha. Nestas cidades, as crianças podem e são capazes de escolher qual seu modo de transporte querem usar nesse ou naquele momento, como um adulto. Não à toa, o planejamento urbano destas cidades vêm sendo pensado e executado, em níveis distintos, também para esses atores que antes passavam despercebidos por arquitetos, urbanistas, engenheiros, prefeitos, vereadores.

E se, excusivamente se, somente adultos pedalassem por Belo Horizonte?

Quero crer que o vereador tem ótimas intenções com a proposição do curso. A primeira delas é a capacitação dos ciclistas para circular pelas ruas da cidade. Corretíssimo! Mesmo eu discordando de boa parte das regras previstas no CTB (que ao longo de sua elaboração não teve auxílio de quem pedala) para as bicicletas e até o descumprindo em alguns artigos, entendo a importância de se dar a possibilidade das pessoas conhecerem as atuais regras de circulação. Isso é bom até mesmo para que estas pessoas ajudem a alterá-las, se for o caso (e é!).

Todavia, condicionar a circulação de bicicletas, patins, patinetes, skates e outros transportes à propulsão humana, seja por quem for e de qual idade for, a uma certificação é uma boa forma de tirar desses modos de transporte a simplicidade e praticidade que eles, por natureza, possuem. Por natureza? Sim. Eles foram feitos para serem usados de forma prática, rápida e sem burocracia. Em todos os lugares onde tentou se condicionar o uso da bicicleta a burocracias, o resultado foi único: diminuição do número de ciclistas nas ruas da cidade.

A resposta do vereador

Antes mesmo de eu terminar de escrever este texto, o vereador respondeu em suas redes sociais:

(…) em momento algum, o Projeto de Lei pretende criar carteira para ciclistas. A intenção é oferecer curso, de forma gratuita e facultativa, para interessados em conhecer melhor as regras de trânsito. Reitero que a capacitação seria gratuita e facultativa. Como ciclista jamais iria propor a obrigatoriedade da carteira. Pedimos desculpas pelo mal entendido.

Ora. Quem lê o PL vê, com todas a letras, o que está escrito em seu artigo 4º parágrafo único: “os aprovados receberão um certificado e uma carteira de ciclista que ficarão sob responsabilidade e custo do usuário”.

Como dito no início do artigo, não se trata de uma CNH, mas de uma outra forma de condicionamento para a utilização dos modos de transporte supracitados. Sobre o fato de ser facultativo, ainda que eu queira acreditar, o texto do PL não mostra isso em momento algum. Dessa forma, corre-se o risco de, durante a regulamentação do projeto, a capacitação se tornar obrigatória.

Dicas para o vereador e seus pares

Caso o vereador queira mesmo contribuir com a promoção e o incentivo do uso da bicicleta na cidade enquanto modo de transporte e ajudar as pessoas que o fazem a terem mais segurança, sugiro:

Deixar claro, no texto do PL, que se trata de um curso facultativo e que não haverá, para os aprovados, a disponibilização de uma carteira de ciclista.

Outras formas, tão simples quanto essa:

Estude mais sobre o assunto.

Conheça quem já está discutindo temáticas ligadas à bicicleta, dentro e fora dos órgãos públicos.

Interaja com os órgãos do Executivo que têm relação com a bicicleta.

Proponha e aprove emendas ao orçamento para campanhas educativas, criação de novas estruturas cicloviárias e outras ligadas à bicicleta.

Ajude a BH em Ciclo​ a executar R$ 400.000,00 previstos para serem executados no orçamento de 2015, que foram aprovados dentro da Câmara Municipal em 2013 e 2014, mas que ainda não estão sob responsabilidade dos gestores do Pedala BH.

Conheça os projetos e ações já executados e os que estão por vir.

Pedale (para a Câmara Municipal e outros lugares da cidade).

#BHPedala, sem obrigações!

Guilherme Tampieri é gestor ambiental e membro do Movimento Nossa BH,
da Uniao de Ciclistas do Brasil (UCB) e da Rede Bike Anjo.

5 perguntas para o vereador Nepomuceno

Por Willian Cruz

Vereador, caso essa certificação se torne obrigatória…

1 Crianças também precisarão de certificado?

2 Como fica a situação de turistas em visita à cidade?

3 Em um cenário onde, sabemos, as mortes de ciclistas ocorrem principalmente como decorrência do desrespeito à presença desse veículo no trânsito, com finas, fechadas e ameaças, o quanto a certificação do ciclista contribuirá para que ele não seja morto por motoristas intolerantes? Não deveriam ser esses os primeiros a receber um treinamento, seja nos CFCs ou em cursos de reciclagem?

4 Burocratizar o uso da bicicleta não limita e afasta o cidadão do uso desse tipo de transporte, principalmente entre quem faz uso eventual, entre os usuários das camadas sociais mais baixas e com pouca ou nenhuma educação formal (justamente onde a bicicleta apresenta sua função social de direito gratuito à circulação e de acesso à cidade) e entre os jovens que experimentam essa “nova” forma de mobilidade antes de cair nos encantos do automóvel?

5 Afinal, queremos ou não mais bicicletas na cidade? Me parece que não.

15 comentários em “Por que a certificação para ciclistas em BH é uma péssima ideia

  1. Por que vcs são contra a instituição da CNH para os ciclistas? Por que são contra o emplacamento das bikes? Por que não querem ser fiscalizados? Por que será heim???????

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  2. Sem dúvida, o vereador quer atingir um fim necessário (uso consciente dos modais não motorizados) mas a partir do meio inconveniente.

    Minha sugestão é a mesma que muitas cidades que têm estes modais de uso comum em sua população faz: aprende-se na escola e em casa. Tanta coisa inútil é ensinada nas escolas… Nada custaria uma semana de atividade voltada ao uso consciente de modais não motorizados. Aprender a sinalização, as preferências, os direitos, os deveres, o respeito etc. E leva-se este conhecimento para casa e compartilha-se com os demais. Muito menos burocrático, indolor e de resultados extremamente satisfatórios.

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  3. Me desculpe a franqueza, mas não achei que esta coluna foi redigida considerando realmente o que está escrito. Há uma insistência incômoda em alegar que o projeto estabelece alguma obrigatoriedade.

    O projeto de lei é sucinto. Não entra em detalhes e sabiamente deixa isso a cargo da regulamentação do executivo.
    Para qualquer discussão e estou me baseando unicamente na leitura objetiva do PL em questão: o projeto apenas permite que a prefeitura ofereça curso de capacitação aos ciclistas que se interessarem. Ponto.

    o curso exigir percentual para aprovação é apenas uma forma de condicionar a emissão de certificado. Nada além. Não existe no caput menção a obrigatoriedade do curso a quem quer que seja.
    As sugestões ao vereador são válidas, a exceção das que ferem a área de atuação da vereança. Que ele saiba aproveitar o momento, iniciar o diálogo com a sociedade civil sobre o tema, principalmente por que não temos porta-voz na CMBH para representar os ciclistas da cidade.
    Em tempo, não votei no autor da lei.

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    1. Maurício…
      Eu entendo que no projeto não se faz menção à obrigatoriedade de se prestar ao curso, e entendo que durante a regulamentação do executivo a obrigatoriedade poderá ser instituida, e o parágrafo 4 é claro quando indica que o documento possuirá custo dirigido ao público, processo semelhante ao da CNH. Também acho as sugestão de educar o povo para o transito válida, só não entendo quando as intenções do vereador não são totalmente claras no papel.

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  4. Será que na Europa, EUA, Japão e China tem CHN pra ciclista????? Será o vereador um visionário, criador ou seguidor de tendências mundiais????

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  5. Interessante, a imprudência dos motoristas é responsável direta pela maioria dos acidentes e mortes que acontecem no transito, ao invés de criarem um programa que vise conscientizar os motoristas, eles querem conscientizar os ciclistas? Realmente, somos comandados por pessoas sem a minima noção de administração, estamos entregues nas mãos de Deus…

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  6. Essa lei não seria inconstitucional? Para exigir a obrigatoriedade de uma “CNH”, ou qualquer coisa desse estilo, e condicionar o trânsito de pessoas em veículo de propulsão humana à estar portando esse documento não dependeria de lei federal? Pois o artigo 22, inciso XI, da Constituição diz que compete PRIVATIVAMENTE à União legislar sobre trânsito e transporte. A única lei federal que versa sobre isso não faz essa limitação. Acho que uma lei municipal não poderia fazê-lo. Enfim, quando esses deputados resolvem trabalhar é quando tenho medo.

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  7. Pessoal! Vamos lá na câmara municipal fazer uma protesto? Espero ansiosamente pela resposta do vereador Nepomuceno às perguntas acima.

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  8. Isso ai está me cheirando uma nova forma de desviar dinheiro publico. Esses cursos “gratuitos”, sei não…

    Qdo ele escreveu q ele tb é um ciclista (“… Como ciclista jamais iria propor a obrigatoriedade da carteira. Pedimos desculpas pelo mal entendido.”), senti até vergonha de ter um ABESTADO como esse na mesma categoria que tanto tenho prazer em fazer parte.

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  9. O pessoal de BH pretende se organizar contrariamente a isso de que forma?

    Acredito que ir as ruas é sempre a melhor forma dos ciclista exigirem seus direitos, ir para a rua!

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  10. Dissimulado esse Nepomucemo, fala uma coisa e escreve outra na PL, deveria aprender com a CET e apenas oferecer treinamento, o parágrafo 4 que menciona custo do usuário deixa subentendido um procedimento igual ao de adquirir a CNH.

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