Crime socialmente aceitável

Imagine essa propaganda:

Música animada. Rapaz bonitão e bem vestido, de óculos escuros, andando em câmera lenta, com a câmera filmando de baixo para cima, mostrando o céu azul atrás dele. Imagens bem produzidas, filmagem em ângulos bem escolhidos. Mudança de ângulo, com câmera parada enquanto ele passa e as moças sorrindo para ele de forma insinuante. Ele abaixa um pouco os óculos e retribui um olhar.

Mais à frente, amigos sentados em um carro acenam para ele sorrindo e jogam uma lata de cerveja para cima. A lata sobe rodando. Com um sorriso no canto da boca e olhando por cima dos óculos, ele saca rapidamente a pistola, gira a arma na mão e dá um tiro certeiro na lata, que espirra cerveja para todos os lados.

O grupo de amigos comemora rindo a chuva de cerveja. Um deles abre os braços e coloca o rosto para cima de boca aberta, outro aponta os dois indicadores para o pistoleiro, como quem diz “você é o cara”, enquanto ele se aproxima e os cumprimenta.

Um dos amigos coloca uma lata em cima da cabeça e aponta para ela, provocando o pistoleiro. Em um movimento rápido, ele apoia a arma por cima do outro braço, fazendo pose, aperta o gatilho sem fazer pontaria e a lata sai rodando de cima da cabeça do amigo, sendo apanhada pelo colega que está atrás dele. Ato contínuo, esse colega abre a lata, que espirra cerveja para todo lado.

Close no capô do carro, com a arma sendo colocada com força em cima dele, com a marca bem à vista, ao lado do slogan “proteção e diversão”. O locutor convida: “Ficou com vontade de dar uns tirinhos? Ligue agora para a nossa central e agente um teste”.

No começo do comercial, havia um aviso para não tentar reproduzir as cenas mostradas, pois foram realizadas por um atirador profissional. Mas logo abaixo desse aviso, a mensagem continuava dizendo que não há truques de filmagem e que a arma utilizada é a mesma vendida nas boas lojas do ramo, sem nenhuma adaptação. Um pequeno aviso de “imagens meramente ilustrativas” acompanhou as cenas o tempo todo em um canto da tela, mas quem reparou nisso?

Esse comercial – que é bom deixar claro: não existe – seria uma incitação ao crime de disparo de arma de fogo em lugar público e deveria dar cadeia a quem o produzisse.

Agora lamente essa outra:

“Teste os limites desse carro”.
Imagem: reprodução

Lendo uma notícia comum na internet, um pequeno banner chama atenção pelo movimento: um carro fazendo “zerinho” e soltando fumaça dos pneus. O texto convida a “desafiar” o novo modelo de um carro esportivo. Curioso e empolgado, o adolescente (ou adulto “amante da velocidade”) clica.

Em uma nova janela, com música agitada, imagens de vídeo em diversos ângulos de um carro “fritando” os pneus. O site diz que “este carro já vem pronto para rasgar na pista” e oferece a oportunidade de “desafiar” o carro esportivo de alta potência.

A pulsação da vítima do marketing aumenta e ele se ajeita na cadeira. A peça publicitária fala sua língua e acaba de fisgá-lo. Ele clica, ansioso por começar o desafio. Arrasta alguns cones em uma tela, como se estivesse montando uma pista de provas, podendo inclusive escolher uma “câmera interna”, para se sentir dentro do carro. Terminando de posicionar os obstáculos, clica para ver como o carro supera o desafio imposto, ansioso pela emoção de ver uma máquina de 140 cavalos sendo pilotada de maneira agressiva.

O carro “já vem pronto para rasgar na pista”. As imagens que passam no fundo, com a fumaça saindo dos pneus, dão o mote da venda: um carro para barbarizar nas ruas.
Imagem: reprodução

Enquanto os vídeos são carregados, surge uma mensagem dizendo para não tentar repetir as próximas cenas, pois elas foram feitas com pilotos profissionais. Subentende-se que com experiência e treinamento é possível fazer tudo aquilo que será visto a seguir, idéia reforçada com a mensagem seguinte: “não existe nenhum truque nas filmagens” e o carro “é o mesmo que você encontra nas concessionárias, com todos os itens de série”.

Gastando o máximo de pneus e gerando muita fumaça de borracha queimada, um piloto de capacete e sem mostrar o rosto, com luvas e uniforme negros como o carro, é nosso herói pistoleiro, que guia a bala magicamente por entre os cones em tempo recorde.

A adrenalina do espectador, que adora carros e velocidade, vai a mil com a demonstração de destreza e confiança dada pelo piloto, o homem sem rosto que poderia ser ele. Aproveitando a guarda baixa, o site dá a última sugestão para a mente influenciável: “Ficou com vontade de dirigir o Astra 2010? Clique e agende um test drive.”

A pessoa que decidir pela compra desse carro não vai adquiri-lo para dirigir a 70km/h, fazendo curvas com segurança. Isso para mim está bastante claro.

Me parece uma incitação a um crime que, nesse caso, é o de direção perigosa.  Isso deveria dar cadeia.

Mas não é exagerada essa comparação?

Veja o que diz a lei e tire sua conclusão:

Disparo de Arma de Fogo

L-010.826-2003 Art. 15. Disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável.

Direção Perigosa de Veículo na Via Pública

DL-003.688-1941 Art. 34 – Dirigir veículos na via pública, ou embarcações em águas públicas, pondo em perigo a segurança alheia:

Pena – prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses, ou multa.

Ambas as situações são crimes. Teoricamente, a diferença é que se você colocar outras pessoas em risco com um carro a pena é menor e você pode sair sob fiança. Teoricamente, porque na prática é MUITO difícil alguém ser preso por direção perigosa. Parece até ser um crime “socialmente aceitável”, já que é raro a pena ser aplicada. Sempre aparecem desculpas e argumentos para provar que a máquina escapou ao controle e agiu sozinha, convertendo a pena, quando aplicada, em no máximo uma multa, como prevê a mesma lei.

Ah, é claro, se eu disser aqui que, com essa propaganda, quem vende a arma está incentivando o crime, vão alegar que não e ainda é capaz de me processarem. Afinal, avisaram para não fazer isso em casa e colocaram uma frase dizendo que é tudo meramente ilustrativo, o que significa que as pessoas vão entender sim que aquilo não deve ser feito e é tudo uma brincadeira. Então tá, então eu não digo…

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Compre nosso carro e seja alguém na vida
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Mais um comercial nojento
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Calcule quantos anos de sua vida você gasta dirigindo
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O automóvel e o desgaste social
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Contra a propaganda automobilística
(Panóptico)

$olidão
(Apocalipse Motorizado)

6 comentários em “Crime socialmente aceitável

  1. Juventude condicionada !!
    Não sei o que aconteceu comigo, eu pegava carro escondido para borrachar e comprava full power, hoje tenho a mesma visão de vocês, aposto que a maioria dos jovens trabalha para poder comprar um turbo ou colocar um spoiler que viu na Faria Lima no sábado… eu hoje junto dinheiro para comprar um cubo alívio. (se alguém quiser me dar eu aceito) e sonho com uma Stumpjumper HT

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  2. Opa, tudo bom?

    Eu tava lendo seu blog e vi que fala bastante de esportes e ciclismo.. Gostaria de fazer uma sugestão de post.. acho que será válido para seus leitores!

    Onde posso mandar?
    Abraços!

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  3. Vou para concessionária e vou agendar um test drive. Peço a companhia de alguém da loja e faço tudo que o piloto fez. Que tal? Posso não matar ninguém na rua, mas mato o vendedor do coração.

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