Danilo Silvestre e sua dobravel, a "Yorda". Foto: arquivo pessoal

Solidariedade e superação na Rota Márcia Prado

Sem saber bem o que iria encontrar, Danilo Silvestre foi com uma dobrável. Veja como foi essa aventura e quanta gente o ajudou na viagem.

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Depois da descida oficial da Rota Márcia Prado, acabo contando aqui como foi a minha descida. Mas, dessa vez, preferi publicar o relato enviado por um leitor, o Danilo Silvestre. Leia e você entenderá o motivo.


“Estranhamente, aprendi a andar de bicicleta apenas no ano passado, aos 26 anos. Talvez, por isso, as primeiras pedaladas tortas despertaram imediatamente a vontade de levar a bicicleta às ruas, transpor as distâncias do meu dia a dia como eu transpunha a dificuldade de uma atividade que não aprendi na infância.

Meu aprendizado misturou desde o começo tanto a segurança de se pedalar no parque quanto a aventura de se pedalar nas ruas de São Paulo, primeiro evitando pela calçada certos percursos, empurrando, e depois pegando a confiança necessária para tomar o espaço que me era de direito. Por isso, a primeira bicicleta foi uma dobrável, capaz de entrar no metrô pelas manhãs e me empurrar até trabalho e faculdade no resto do caminho.

Rapidamente fui me acostumando não apenas com as dificuldades de ser um ciclista em São Paulo, mas também com as dificuldades de transitar com uma dobrável e suas rodas menores e mais instáveis. Em menos de um ano, virei frequentador assíduo das Bicicletadas da cidade e passei a topar qualquer trajeto em cima da bicicleta. Só faltava um teste definitivo para consagrar tanto meu aprendizado quanto minha autonomia adquirida: descer pra Santos pela Rota Márcia Prado.

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Pesquisei um tanto e não encontrei ninguém que dissesse explicitamente que fazer o trajeto de 100km de dobrável não fosse recomendável. Também não encontrei ninguém que topasse fazer o trajeto comigo, então fui na cara e na coragem, sozinho.

Para preservar umas horas de sono, cortei parte do percurso com um trem até o Grajaú e de lá, sem saber para onde ir, simplesmente passei a seguir as bicicletas que passavam às centenas – mesmo sabendo que muitos haviam começado o trajeto às 7h, muita gente ainda passava quando comecei a pedalar às 10h. O primeiro desafio foi manter o ritmo dos outros ciclistas nas subidas do Grajaú estando com minha dobrável aro 20, mas logo percebi que sempre que eu perdia um grupo de ciclistas por ficar para trás, outro surgia logo depois me indicando o caminho. Com tanta gente participando e saindo em horários tão diferentes, não teria como me perder.

A fila da primeira balsa fez com que muita gente buscasse caminhos alternativos.

Até que, já exausto com as subidas do Grajaú, o trajeto se dividiu em dois, com ciclistas tomando duas rotas bastante diferentes. Parei em uma banca de frutas e tentei entender com os vendedores que estavam ali desde o começo do dia o que estava acontecendo. Chegavam relatos de que a balsa estaria quebrada (depois alterados para ‘uma fila impossível de esperar’) e que portanto muitos estavam tentando um caminho ‘por dentro’, alternativo, para pular a primeira balsa e encontrar os outros ciclistas pouco antes da segunda. Quando um grupo de ciclistas passou por ali alegando que o caminho alternativo era mais esperto, resolvi seguí-los – mas não sem antes ganhar algumas bananas do dono da banca de frutas, que se negou a receber qualquer dinheiro da minha parte. Foi a primeira de muitas demonstrações de generosidade no dia.

O caminho alternativo não se mostrou uma ideia tão boa. Por cerca de 3 horas não vi sequer traço de asfalto, apenas estradas de terra esburacadas forradas de pedras soltas, muitas subidas, e o fluxo menor de ciclistas garantiu que eu fizesse a maior parte do trajeto totalmente sozinho. Numa descida mais íngreme sofri uma queda – TOMBOS: UM E CONTANDO -, pois a dobrável pula como pipoca no relevo acidentado e não é possível ganhar muita velocidade. Um carro local parou ao meu lado para saber se eu estava bem, mas para minha sorte – sorte e, claro, um bom par de luvas – não me machuquei. Continuei pedalando e, poucos minutos depois, alguns ciclistas me esperavam após serem informados por um carro de que eu havia caído mais atrás. Apenas após se certificarem de que eu estava bem continuaram o percurso.

Uma das muitas subidas do trecho de terra.

Pedalei sem mais ninguém por estradas de terra desconhecidas, tendo que perguntar para moradores locais o trajeto toda vez em que havia bifurcação na estrada, ou então tendo que localizar as marcas de pneu de bicicleta na terra úmida, mas nem por um segundo me senti sozinho – sabia que, caso caísse, receberia novamente a generosidade de outros ciclistas.

Os poucos grupos que encontrei nesta parte do trajeto reagiram sempre com espanto e admiração à minha dobrável. Parando para respirar num boteco que surgiu no caminho, um ciclista disse que eu estava ‘tentando fechar a rota Márcia Prado no hard’, ao que respondi ser uma ideia meio doida, tendo em vista que eu nunca tinha ‘fechado ela no easy’. Aos que me chamavam de corajoso por fazer a rota sozinho e na pequena bicicletinha, respondia que ainda não sabia se era corajoso ou maluco – o que era verdade, já que minha vontade de autonomia ignorou um tanto as dificuldades reais.

Muitos ciclistas optaram por fazer a travessia nos barcos.

Cheguei com esse grupo do boteco à segunda balsa e sua fila interminável, e fui convidado a acompanhá-los na travessia num barquinho a motor local por 10 reais cada um. Quando atinei em voz alta que o pequeno barco talvez não fosse uma boa ideia para mim, que não sei nadar, um ciclista mais experiente simplesmente me proibiu de subir no barco. Ele tinha toda razão: autonomia não significa se expor a riscos desnecessários.

Me despedi do grupo e encarei a fila como todos os outros, aproveitando para enfim descansar um pouco – com medo de perder o horário de fechamento do Parque da Serra do Mar, e sabendo que minha velocidade na dobrável deixava a desejar, não havia me dado ainda direito a um descanso. Foi na fila para a segunda balsa que ouvi as histórias da primeira, cuja fila durava perto de 4 horas, os ciclistas que haviam comprado passagens de ônibus em Santos com antecedência e já não tinham como chegar a tempo, e o medo generalizado de não conseguir entrar no parque dentro do horário limite. Esperei cerca de uma hora nessa fila, tentando aproveitar tudo ao meu redor.

Com a balsa transposta encontrei mais estradas de terra, mais pedras soltas, mais subidas intermináveis, e mais gente disposta a conversar toda vez que eu me via obrigado a sentar um pouco. Ao chegar na Imigrantes, a felicidade de encontrar asfalto foi minimizada pelo começo de chuva e vento contra, o que me fez sentir pedalando à velocidade de um triciclo de criança. Só cheguei na entrada do parque às 17h, sete horas depois de ter começado o trajeto, duas horas depois do horário que o parque fecharia, completamente exaurido, mas ao menos os portões estavam abertos.

Deitei no chão de pedras – do lado de dentro! – e realmente cogitei desistir ao saber que só havia cumprido mais ou menos metade do caminho. Fiquei bolando na minha cabeça para quem eu iria telefonar que pudesse me resgatar em plena Imigrantes. Mas então rostos que eu havia conhecido no trajeto até ali começaram a passar, me cumprimentar, perguntar das dificuldades da viagem. Me deram gel protéico, uma corda para amarrar minha mochila na bicicleta e poupar minhas costas, um celular para ligar e avisar a esposa que o trajeto ainda tinha muitas horas pela frente, e muito incentivo para seguir adiante e aproveitar o que prometiam ser ‘a melhor parte da viagem’.

Quando enfim resolvi tentar, furei imediatamente o pneu ao passar por uma peça de bicicleta quebrada. Um casal me ajudou a trocar a câmara da roda de trás, um dono de bicicletaria me ajudou a arrumar os freios que ficaram comprometidos após a troca. Todos sempre com a maior boa vontade e boas doses de carinho.

O cenário da Estrada de Manutenção sempre impressiona, mesmo a quem já fez a Rota diversas vezes.

De fato, o resto do trajeto não apenas foi mais simples graças à presença constante dessa maravilha chamada asfalto, mas também foi o que mais valeu a pena: a paisagem da descida de serra é simplesmente espetacular, indescritível, forrada de cachoeiras e mata nativa – e também de uma quantidade impressionante de oferendas religiosas, o que torna a descida bastante peculiar. Minha única dificuldade – a mochila que insistia em sair do bagageiro e que minhas costas já não tinham condições de levar – foi vencida assim que pedi ajuda para uma garota prestativa, que me ensinou alguns truques. Foi ali também que recebi dicas de alguns ciclistas de como voltar para casa, já que eu não tinha uma passagem de volta. Me recomendaram tentar voltar de Cubatão, que teria obviamente um menor volume de gente tentando conseguir lugar num ônibus.

Recebi tanta ajuda e tanto apoio que uma hora parei de sentir o cansaço. Quando uma garota passou por mim na descida do parque e disse ‘eu amo minha dobrável, mas pra esse percurso não dá, é totalmente impossível’, minha resposta foi simplesmente ‘é possível, cheguei até aqui’. Perto de Cubatão, um ciclista tentava convencer os outros a tomar uma rota alternativa para não cair de jeito nenhum dentro de uma favela, como o trajeto original previa. Não entendi. No Grajaú, nas estradas de terra, nas regiões mais simples, na periferia de Cubatão, o que recebi foi sempre o mesmo: ajuda e admiração. Na favela de Cubatão as crianças sorriam e cumprimentavam os ciclistas que passavam, os moradores indicavam o caminho para o centro da cidade com satisfação, e até troquei risadas com os policiais militares exaustos de passar o dia inteiro indicando o mesmo trajeto. Ao contrário do que acontece quando pedalo no Centro de São Paulo, onde moro, na periferia de Cubatão fui sempre metodicamente ultrapassado pela esquerda por todos os automóveis. Ao invés de medo e impossibilidade, só encontrei mesmo foi respeito e generosidade.

Pedalando já em Cubatão, tive meu acidente mais feio: passei com a roda em diagonal numa ponte por onde passava um trilho de trem, ao que minha roda afundou e me esborrachei no chão – TOMBOS: DOIS E CONTANDO. Mas é claro que um ciclista mais à frente me ajudou a levantar, ajudou a desentortar minha bicicleta, a arrumar a corrente, me ensinou como passar com a roda por aqueles trilhos, e passamos um tempo ali avisando outros ciclistas para tomarem cuidado. Um morador local nos disse que durante o dia havia presenciado mais de 50 acidentes ali.

Segui o ciclista que me ajudou até o centro de Cubatão, onde um senhor num bar que já pedalara de São Paulo mais cedo, sabendo de minha exaustão, me indicou o caminho mais curto para a rodoviária. Fiquei ainda mais agradecido, levando em conta que, após o segundo tombo, havia perdido parte das minhas marchas mais leves.

É claro que centenas e centenas de ciclistas aguardavam por um lugar num ônibus de volta para casa, quando cheguei às 20h30 na rodoviária. Mas fui recebido por um grupo específico de ciclistas muito impressionados com minha viagem ter sido em cima da dobrável – e ter durado mais de 10 horas até Cubatão. Quiseram saber do percurso, das dificuldades, e me explicaram que os ônibus estavam saindo apenas com 12 passageiros de cada vez, ou seja, o número de bicicletas que cabiam dentro dos bagageiros.

Bicicletas sendo colocadas no bagageiro de um ônibus.

Foi então que um deles atinou que um pequeno bagageiro do ônibus que saía não estava sendo usado por ninguém por ser pequeno demais – exatamente o tamanho da minha dobrável. Foi esse grupo que pediu para o ônibus esperar, que explicou a situação para que eu cortasse toda a fila, e que dobrou minha bicicleta enquanto eu comprava a passagem. Para meu azar, eu não tinha todo o dinheiro necessário para a passagem e a rodoviária não aceitava cartão, então um ciclista da fila simplesmente pagou a diferença para mim e desejou boa viagem, assim como as outras centenas de ciclistas da fila enquanto eu embarcava no ônibus – provavelmente o único a ter 13 passageiros naquela noite. Ainda teve mais: me ofereceram um celular na viagem para avisar que eu estava chegando, e consertaram meu cabo de freio solto assim que cheguei na rodoviária para que eu pudesse pedalar até em casa.

A Rota Márcia Prado não é um evento institucionalizado, controlado, com gente paga para te guiar pela mão e ajudar em nome de um salário. É um evento livre, caótico, em que pessoas calham de estar indo para o mesmo lugar, e que justamente por isso vê brotar momentos genuínos de generosidade. Fiz a rota sozinho – exatamente do modo que cruzo São Paulo, que me locomovo pela cidade, que exerço minha autonomia e minha cidadania – mas tive o auxílio e o carinho de inúmeras pessoas que eu sequer saberei o nome e que me ajudaram justamente porque tínhamos um objetivo em comum. A todas elas, meu muito obrigado. Juntos, fizemos algo verdadeiramente especial.”


 

Conte aqui nos comentários a sua história sobre a Rota Márcia Prado!

19 comentários em “Solidariedade e superação na Rota Márcia Prado

  1. O Danilo Silvestre, tudo bem?
    Quando for fazer uma cicloviagem dessas me chama que eu vou!!!
    Só pedalo de dobravelzinha desde criança…
    terei o maior prazer em te acompanhar no pedal!!!
    Já fiz a Rota Marcia Prado…e podemos juntos, fuiiii!!!!

    Cicloabraços
    Joãozinho

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