Policial impede ciclistas de prosseguirem na Rodovia dos Imigrantes, apesar do direito de pedalar no acostamento. Foto: Willian Cruz/VdB

Apreensão de bicicletas em rodovias é ilegal e arbitrária

Não bastasse a proibição de bicicletas em rodovias ser extremamente questionável, elas não podem ser apreendidas. Não há base legal para essa ação.

Código de Trânsito define acostamento como o local destinado à parada de veículos em emergência e à "circulação de pedestres e bicicletas". Foto: Willian Cruz
Legislação garante a circulação de pedestres e bicicletas em rodovias, que devem fornecer condições seguras para todos seus usuários, independente do modal utilizado. Foto: Willian Cruz

As recentes apreensões de bicicletas por parte da Polícia Rodoviária nas estradas do estado de São Paulo têm repercutido fortemente entre os ciclistas de todo o país. Como se não bastassem a embriaguez, imperícia e até ameaças propositais de motoristas, a falta de estrutura por parte do Estado e os frequentes assaltos, quem se desloca nas rodovias ainda tem que se preocupar em ter sua bicicleta levada pela própria polícia.

Os ciclistas têm direito de circulação em rodovias e é obrigação do Estado proporcionar segurança para que isso ocorra. Isso está claro logo no primeiro artigo do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), parágrafo segundo:

Art. 1º O trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, rege-se por este Código.

§ 2º O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito

Repare que a Lei especifica que devem ser adotadas medidas destinadas a assegurar esse direito – nunca subtraí-lo. Uma estrada é insegura para determinadas categorias de usuários é uma demonstração inequívoca de que a obrigação do Estado não foi cumprida e é extremamente incoerente que o cidadão seja punido por isso.

Essa obrigação também é citada no artigo 21 do CTB:

Art. 21. Compete aos órgãos e entidades executivos rodoviários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:

II – planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e da segurança de ciclistas

Repare que cabe ao Governo do Estado de São Paulo promover a circulação e a segurança de ciclistas. Está mais do que evidente. Impedir o trânsito de bicicletas é uma medida que vai contra o que determina a legislação.

Policial impede ciclistas de prosseguirem na Rodovia dos Imigrantes. Foto: Willian Cruz
Policial impede ciclistas de prosseguirem na Rodovia dos Imigrantes. Foto: Willian Cruz

A rodovia não pode oferecer risco. Se há risco de forma tão preocupante, a ponto de necessitar de medidas extremas de proteção à vida, há alternativas que não ferem a lei:

  • Eliminar o elemento causador do risco – no caso, o automóvel. Os motoristas teriam que utilizar outro caminho – o que é, hoje, proposto às vítimas potenciais desse risco, não a seus causadores potenciais.
  • Fechá-la por completo até que o risco seja mitigado, pois uma rodovia com risco de morte para seus usuários não deve permanecer aberta.
  • Montar uma operação de escolta ou comboio quando usuários vulneráveis adentrarem na rodovia, isolando-os do elemento causador do risco.
  • Preparar um caminho alternativo e viável para pedestres e ciclistas, sem contudo proibi-los de usar a via principal enquanto a alternativa não é concluída.

Repare que no caso da Rodovia dos Imigrantes, o caminho alternativo seria a Estrada de Manutenção (Rota Márcia Prado), mas o acesso a essa via também vem sendo impedido com frequência.

O que não pode ser aceita é a proibição de circulação e, pior, a retenção do veículo que o cidadão poderia usar para sair dali. Imagine estar viajando de carro com sua família e ter seu veículo apreendido porque a estrada apresenta risco, ficando em meio ao nada e tendo que voltar para casa por sua conta e risco?

E, como se não bastasse o absurdo de ficar a pé no meio da estrada (muitas vezes com equipamento e vestimentas que dificultam caminhar), a retenção das bicicletas não tem base legal.

Apreensão é ilegal

Bicicletas só podem ser retidas em casos muito específicos, como esclarece o CTB:

Art. 255. Conduzir bicicleta em passeios onde não seja permitida a circulação desta, ou de forma agressiva, em desacordo com o disposto no parágrafo único do art. 59:

Infração – média;
Penalidade – multa;
Medida administrativa – remoção da bicicleta, mediante recibo para o pagamento da multa

O artigo 255 diz que só se pode apreender em duas situações específicas: quando o ciclista estiver transitando na calçada ou quando estiver conduzindo a bicicleta de forma agressiva (“passeio” para o Código de Trânsito significa calçada – basta olhar no glossário). Subtrair do ciclista seu veículo “para sua própria segurança” é contra a Lei. Não está previsto no Código de Trânsito ou em qualquer outro lugar. Não existe. É ilegal. Nunca deveria acontecer.

Policiais cumprem ordens. E quem deu essa ordem está tentando intimidar os ciclistas, passando a mensagem de que pedalar na estrada não será tolerado: nem tentem, pois vamos tirar o brinquedinho de vocês. E vamos flexionar a interpretação da Lei o quanto for necessário para que possamos fazer isso. Não discuta, obedeça. Você não é bem vindo.

Direito de circulação não pode ser retirado

A justificativa para impedir os ciclistas de circular em rodovias é que fazê-lo implica em colocar-se em risco. Mas não é o ciclista que se coloca em risco: são os motoristas que desrespeitam sinalização, que ultrapassam de forma insegura, que não reduzem ao ver o ciclista, que excedem o limite de velocidade. Motoristas que ignoram a segurança e o direito à vida, convencidos de que seu “direito” (inexistente, diga-se de passagem) de dirigir em velocidade se sobrepõe à segurança das outras pessoas. E o Governo do Estado também é responsável pelo risco ao qual o ciclista é exposto, ao fazer vista grossa para a realidade de haver pessoas se deslocando a pé e de bicicleta nas rodovias, preferindo proibir do que resolver a questão.

Imagine impedir a circulação de automóveis em certas áreas das cidades, pois o índice de assaltos com potencial de latrocínio é alto. Impensável, não é? Foto: Willian Cruz
Imagine impedir a circulação de automóveis em certas áreas das cidades, pois o índice de assaltos com potencial de latrocínio é alto. Impensável, não é? Foto: Willian Cruz

Impedir o trânsito de quem corre o risco de se tornar vítima, e não de quem oferece risco de morte, é um completo absurdo. Seguindo essa lógica, quando um motociclista morrer numa estrada deveremos proibir as motos. Afinal o motociclista está se colocando em risco, portanto não deve circular ali. Quando um motorista de carro de passeio morrer, vamos proibir os carros, para que essas pessoas não se exponham a risco. Quando um ônibus e uma carreta colidirem de frente, vamos proibir todo mundo e fechar a estrada de vez. Percebem como não faz o menor sentido?

Pelo mesmo raciocínio, deveríamos proibir a circulação de carros em áreas das grandes cidades onde ocorram frequentes assaltos que resultam em latrocínios, como no bairro do Morumbi, em São Paulo. Seria o reconhecimento da falência da política de segurança pública do estado. O mesmo ocorre quando se proíbe um ciclista de trafegar em uma via onde é permitido por lei que ele o faça, usando como justificativa a potencialidade de risco.

O que fazer?

“Trata-se de atos administrativos discricionários por parte do Comando de Policiamento Rodoviário da Polícia Militar do Estado de São Paulo”, destaca Fernando Torres, consultor jurídico do Vá de Bike e autor da coluna Direito de Pedalar. Ele reforça que “submetidos às ordens hierárquicas”, o policiamento se reporta à Secretaria de Segurança Pública do Estado e ao Governador.

“A inexistência de proibição formalizada por decreto ou lei demonstra claramente seu caráter ilegal por parte das autoridades”, aponta Torres. “Uma vez formalizado, poderia ser fulminado no judiciário por ações promovidas pelos cidadãos insatisfeitos ou pelas entidades representantes dos ciclistas. No momento, reitero, que a possibilidade é tentar buscar judicialmente um Salvo Conduto por meio de Habeas Corpus para aqueles que pretendem realizar o percurso.” Saiba mais.

Seria importante que entidades de defesa dos ciclistas se manifestassem publicamente sobre o assunto, se possível mobilizando seus advogados para conseguir uma definição oficial, com uma liberação definitiva que venha a beneficiar a todos que circulam de bicicleta nas rodovias brasileiras, seja em treinamento, a passeio ou em viagens. Precisamos que a presença de bicicletas em rodovias seja reconhecida, aceita e protegida pelos órgãos públicos, em respeito à legislação e ao direito dos cidadãos.

26 comentários em “Apreensão de bicicletas em rodovias é ilegal e arbitrária

  1. Desculpem os ciclistas, mas essa lei e absurda, sem contar os ciclistas que querem andar quase de mãos dadas nas BR, acho que deveria ser proibido , por segurança dos próprios ciclistas, aliás nas rodovias só deveriam andar veículos motorizados acima de 80cc.

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