As crianças sonham com o quê mesmo?

O automóvel é o maior fator poluidor nas grandes cidades. Em São Paulo, todo dia 10 a 12 pessoas dão a vida para que os carros possam continuar poluindo.

Então um dia uma montadora faz uma campanha dizendo que faz todo o esforço possível para não poluir, mostra crianças nas fotos com seus supostos desejos sobre os automóveis do futuro, focando no impacto ambiental, para apelar ao instinto materno-paternal dos consumidores e prepará-los para absorver emocionalmente o texto que se segue. Estudaram a cartilha direitinho: antes de assar o bife, martelaram bem pra amaciar. O texto diz que “fazemos tudo que está ao nosso alcance”, “poluímos o mínimo possível”, “reciclamos isso e aquilo”, bla bla bla.

Leia o artigo bastante pertinente que inspirou a redação deste texto aqui.
Os aplausos da mídia cega
e surda estão aqui

Em outras palavras, estão dizendo “fabricamos máquinas que matam pessoas, mas fazemos o possível para que elas matem só um pouquinho.” É hipocrisia dizer isso para as pessoas que morrem por infarto e arritmia cardíaca em decorrência do monóxido de carbono, às pessoas que manifestam tumores disparados pelos hidrocarbonetos do combustível parcialmente queimado, às crianças que sofrem com a poluição e a todos nós que enchemos nossos pulmões diariamente com material particulado.

A propaganda deixa o leitor com a sensação de que a montadora é uma empresa bacana, que se preocupa com as pessoas e faz de tudo para que elas não sofram com a poluição. Se fosse assim, fabricariam máscaras de gás em vez de carros. É o mesmo que uma marca de cigarro dizer que tem uma versão “light” porque se preocupa com a saúde do fumante.

A informação mais importante não é a que a propaganda passa, mas a que ela ilustra. Para ganhar dinheiro concedendo um “benefício” a quem se dispõe a gastar uma pequena fortuna num carro, a montadora precisa fazer as pessoas como um todo sofrerem. A empresa, essa entidade intangível, alexitímica e apática que serve de escudo moral para que seus proprietários enriqueçam a qualquer custo, não vai deixar de vender seus carros por causa dessa contrapartida de sofrimento.

A empresa vai, realmente, tentar fazer com que as pessoas sofram um pouco menos. Mas não porque se importe com as pessoas, afinal uma empresa não tem compaixão, apenas metas. Vai fazer isso porque uma pesquisa mostrou que os consumidores andam preocupados com o futuro de seus filhos e, se eles não mudarem sua imagem, podem perder mercado. Perder dinheiro. Diminuir os lucros. Deixar de atingir as metas.

Não avaliem uma propaganda com seus corações e sim com suas mentes. Propagandas com animais fofinhos, bebês, crianças, referências diretas ou indiretas a sexo, ao senso de justiça ou ao de auto-preservação, colocam o dedo nos nossos instintos básicos, os instintos que guiam nossa sobrevivência e que foram responsáveis por termos chegado no topo da escala evolucionária aqui na bolinha azul. Usem suas mentes, separem a emoção e entendam qual a informação real que pode ser percebida naquela propaganda, em vez da que tentam nos convencer através de subterfúgios e golpes baixos. Compre o que você realmente precisa, não o que te convencem ser importante. Reflita, pesquise, se informe e compreenda o todo, não aquela faceta que tentam tornar mais relevante que o todo.

Lembre-se que montadora não coloca retrovisor do lado direito do carro popular, porque ele é “opcional”. Montadora tira a luz da ré de um dos lados do carro, deixando uma só, por “questão estética” (ou outra desculpa pior). Montadoras só passaram a colocar cintos de três pontos em todos os veículos porque a lei obrigou. Montadora não coloca air-bag e freio abs em todos os carros porque eles ficariam mais caros e não venderiam tanto. Montadora venda seus olhos para o que acontece com os carros depois que eles saem da fábrica, porque supostamente não tem mais nada a ver com isso (afinal, “enquanto estavam aqui dentro não mataram ninguém”).

10 comentários em “As crianças sonham com o quê mesmo?

  1. Willian, esse lance de os caras fazerem propaganda falando exatamente o contrário do que pretendem é muito bem explorado no início de um texto das antigas do Joel Spolsky (http://www.joelonsoftware.com/articles/fog0000000054.html). Trecho:

    “The idea of advertising is to lie without getting caught. Most companies, when they run an advertising campaign, simply take the most unfortunate truth about their company, turn it upside down (“lie”), and drill that lie home. Let”s call it “proof by repeated assertion.” For example, (…) Paper companies are completely devastating our national forests, clear cutting old growth forest which they don”t even own. So when they advertise, they inevitably show some nice old pine forest and talk about how much they care about the environment. Cigarettes cause death, so their ads show life, like all the ads with happy smiling healthy people exercising outdoors. And so on.”

    Como diriam Hermes e Renato, “fi-lhas-das-**-**”…

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  2. Nao podemos esquecer que o Petroleo vai acabar um dia. Montadoras serao forcadas a criar novos motores sem poluentes. Talvez nao vivamos para ver.
    Excelente site, valeu.

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  3. Quando dei a dica desses anúncios pro Luddista, do ApocalipseMotorizado, chamei atenção para o fato que uma matéria no Estadão sobre os lançamentos e propaganda dos novos modelos das montadoras tinha o seguinte título:
    “Montadoras mostram as suas armas para conquistar o consumidor”

    Armas? ahahah
    sei

    []s e bom pedal

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  4. ALguns problemas que atribuo ao carro, seria a individualização do cidadão, o cara q vive de carro fecha-se em seu próprio mundo.
    Fora isso há também a velocidade elevada que por Lei não podemos usar, esta é uma das maiores causas de mortes e até o medo de se utilizar a bicicleta como transporte.

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  5. André, claro que pode colocar o link!

    Gerson, já faz um bom tempo que eu ouço falar de carro elétrico, de carro “movido a água” e outras alternativas, mas as indústrias não se interessam muito em investir nisso. De uns tempos para cá, como o assunto meio-ambiente tem ganho destaque, passou a ser politicamente correto se preocupar com a poluição. Têm surgido carros híbridos, com boa aceitação no mercado.

    Meu texto fala de duas coisas e deixa de falar de uma muito importante, que pretendo abordar em outro artigo. As duas coisas que esse texto fala são poluição e marketing. O que deixa de dizer é que o problema com os carros não se limita à poluição, qualquer hora explico isso melhor.

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  6. Olá Willian, hoje cheguei no teu blig lá pelo site da Total Bike, reconhecí teu nome na matéria e vim ver teu site, e aqui me deparei com este texto. Então, não vou esperar pra dizer que sou estudante de engenharia mecânica e provávelmente vou me especializar em automobilística, sou ciclista de MTB, amador, como vc, pratico xc mas me divirto descendo umas escadinhas de vez em quando rsrs
    Então, penso muito nesses problemas com a relação a poluição que produzimos, e hoje nos projetos das faculdades sempre estão presentes protótipos de carros que poluam menos e consumam menos, mas até agora estes carros não andam mais do que qualquer bicicleta consiga, agora estão lançando carros com células de hidrogênio, o carro anda normalmente e libera pelo escape água, mas o que mais me irrita é o fato de isso já existir faz tempo, mas não conheço nenhuma montadora sequer pensando em produzí-los brevemente… é a indústria do petróleo… Por isso valorizo a bike, talvez já tenha me visto defendendo produtos brasileiros num fórum, isso porque eu acho que quando temos um pai empregado na indústria, isto incentivará sua família a respeitar aquilo que produz, isso acontece com a indústria de auto peças e automobilística, mas se houvessem mais empresas produzindo bikes e peças isso aconteceria da mesma forma. Não se vê uma propagande de bike na nossa tv, a bike no Brasil se tornou briquedo do ibirapuera, e as pessoas vem o carro como poder e status…
    Obrigado por ter aberto meus olhos para o que eu via na tv…

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