Criança indo para a escola na ciclovia do Viaduto do Chá, no centro de São Paulo. Foto: Aline Os

Ciclovias devolvendo as ruas às crianças

A importância das ciclovias para as crianças, com uma comparação entre protestos pró-ciclovia da Holanda e manifestações e ações anticiclovia em São Paulo

Criança pedalando em ciclovia recém inaugurada na Al. Nothmann. Foto: Claudio Kerber
Criança pedalando em ciclovia recém inaugurada na Al. Nothmann. Foto: Claudio Kerber
Menina pedala na ciclovia da Granja Julieta, mesmo sem ter sido inaugurada. Foto: Alex Gomes
Ciclovia da Granja Julieta, ainda não inaugurada. Foto: Alex Gomes

Um fenômeno interessante e de grande importância vem ganhando forma nas ruas de São Paulo: a retomada do espaço público pelas crianças. Locais que antes eram desperdiçados com veículos particulares estacionados estão sendo regatados para uso público. E, dentre os novos usuários, estão as crianças da cidade, geralmente ainda acompanhadas de seus pais.

Essa é uma situação que vem acontecendo também em Sorocaba, uma das cidades brasileiras que tem servido de referência em criação de ciclovias, com uma malha que atende boa parte da cidade. Roberta Bernardi, gerente de Educação para o Trânsito da Urbes, nos contou que sua própria filha de 12 anos vai de casa até o Sesc, pedalando sozinha pelas ciclovias. “Tem uma ciclovia na porta da minha casa, que vai até o prédio do Sesc. A minha filha só avisa ‘estou saindo’ e ‘cheguei'”, relata.

Muito além das vantagens em mobilidade, saúde pública, redução de congestionamentos, dessaturação do transporte público, diminuição da poluição e tantas outras, esse resgate da infância perdida, por si só, já justificaria a criação de infraestrutura para bicicletas, em qualquer cidade em que os cidadãos se preocupem um mínimo sequer com suas crianças. Mas não é bem o que tem acontecido na cidade de São Paulo, muitas vezes apontada como a “mais avançada” do país, como veremos na comparação a seguir.

Protestos na Holanda a favor de ciclovias

Protestos na holanda dos anos 70 motivaram construção e melhoria de ciclovias, tornando o país referência mundial em mobilidade sustentável nos dias de hoje. Imagem: Reprodução.
Protestos na holanda dos anos 70 motivaram construção e melhoria de ciclovias, tornando o país referência mundial em mobilidade sustentável nos dias de hoje. Na faixa, os dizeres que podem ser traduzidos como “Pare o infanticídio – segurança a pé e em ciclovias”. Imagem: Reprodução.

A própria Holanda conquistou suas ciclovias por um desejo de mais segurança para suas crianças, como mostra este minidocumentário. Em 1971, com o uso do automóvel em franco crescimento – e as mortes no trânsito também – uma onda de protestos varreu as ruas para pedir às autoridades que encontrassem soluções para parar o massacre de crianças. O mote da campanha era “stop kindermood” (algo como “pare o infanticídio”).

Na mesma época, as próprias crianças bairro De Pijp, na capital Amsterdam, iniciaram um movimento para mudar o perfil das ruas, na época saturadas de buzinas e motores, lixo nas esquinas e perigo constante para chegar de um lado ao outro das vias, que ficavam atravancadas de carros estacionados e outros engarrafados, sufocando o espaço já estreito. As famílias com filhos não tinham outra escolha senão mantê-los em casa para ver TV, em apartamentos apertados, porém densamente povoados. Alguma semelhança com as nossas cidades atuais?

Percebendo que o intenso tráfego motorizado as impedia de viver sua infância e, pior, traziam risco de machucá-las, questionaram os adultos e exigiram que os carros saíssem dali, como mostra este vídeo. Mais de 40 anos depois, as ruas não só daquela localidade, mas de diversos pontos em Amsterdam, têm uma circulação segura de pedestres e, sobretudo, são locais de convivência humana. É possível brincar, conversar e passear sem que a mobilidade urbana seja comprometida. A capital holandesa é, hoje, um dos referenciais mundiais de eficiência no transporte graças ao equilíbrio real entre o uso de bicicletas, carros, transporte público e deslocamentos a pé.

Veja nesta webcam, ao vivo, um ponto de Amsterdam onde é possível observar a convivência entre diversos modais de locomoção – incluindo uma espécie de metrô de superfície (na verdade um bonde, o tram).

Criança sendo levada na cadeirinha, na ciclovia da Granja Julieta, antes mesmo de ser inaugurada. Foto: Alex Gomes
Criança sendo levada na cadeirinha na ciclovia da Granja Julieta, também antes de uma inauguração oficial. Foto: Alex Gomes

Protestos em São Paulo contra ciclovias

São tantas manifestações e ações contra as ciclovias na capital paulista que poderiam ilustrar um livro. Tantamos nos conter a anumerar apenas quatro delas, que consideramos mais emblemáticas.

Conseg pedindo menos segurança

Duas das imagens que ilustram essa matéria foram registradas na região onde as ciclovias têm enfrentado mais resistência de moradores e comerciantes: o distrito de Santa Cecília, região central da capital paulista. Alguns cidadãos chegaram a registrar um Boletim de Ocorrência contra a Prefeitura (é, não faz muito sentido) por ter implantado as ciclovias sem avisar. Esse argumento esconde sua verdadeira motivação, por sinal bastante egoísta: não poder mais usar o espaço público em frente à sua casa ou comércio como área de estacionamento particular, para si ou para seus clientes.

Para aumentar o non sense, a ação foi promovida pelo Conselho Comunitário de Segurança da região (Conseg) – veja aqui. Ou seja, o grupo que justamente deveria promover ações de segurança para quem mora, trabalha e circula pela região está sendo contrário à estrutura que promove mais segurança aos cidadãos, incluindo seus próprios filhos e netos.

Na minha porta não

Em outubro de 2014, moradores de uma rua em Interlagos fecharam a via e queimaram pneus em protesto contra a ciclovia que foi implantada ali. Como se vê nesta foto, a ciclovia passa em área de guia rebaixada, onde tecnicamente já não era permitido estacionar. Sinal de gente com preguiça de guardar o automóvel na garagem ou de gente com mais carro do que garagem, com o hábito arraigado de usar o espaço público como estacionamento particular?

Ministério Público e mobilização popular

Em março de 2015, o Ministério Público Estadual (MPE) de São Paulo entrou com uma ação civil pública exigindo a paralisação imediata de todas as obras cicloviárias em andamento na capital, pedindo ainda que fossem desfeitas, medida que afetaria até a então em obras ciclovia da Av. Paulista. Uma manifestação com mais de 7 mil pessoas lotou a avenida de bicicletas e foi ecoada em dezenas de cidades do Brasil e do Mundo, pedindo continuidade da implantação de ciclovias na cidade. A suspensão foi derrubada em segunda instância pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).

Ações do Colégio Madre Cabrini na justiça colocam vidas em risco. Fotos: Willian Cruz
Ações do Colégio Madre Cabrini na justiça colocam vidas em risco. Fotos: Willian Cruz

Colégio que deseduca

Desde 2014, o colégio Madre Cabrini, na Vila Mariana, contestava a ciclovia que passava em frente ao estabelecimento. Os pais e mães de alunos eram agressivos com os ciclistas e os funcionários insistiam na tese de que “não havia planejamento”, apesar de toda a sinalização cuidadosamente implantada. Em fevereiro de 2015, a escola conseguiu um mandado pedindo a retirada da ciclovia, com justificativas bastante discutíveis e carentes de coerência, que poderiam até ser usadas para impedir a circulação de carros naquela via. Chegaram a afirmar que a rua seria “estreita e curta”, apesar dela possuir espaço para três faixas de rolamento e comprimento de quase 1 km. Dias depois, a liminar foi suspensa pelo presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), revertendo o entendimento da 1ª instância. O magistrado entendeu que se evidencia “risco de dano à ordem, à segurança e economia públicas”.

Em maio de 2016, o colégio conseguiu, por determinação judicial, retirar a ciclovia no trecho em frente ao portão de entrada. A área em frente ao colégio foi sinalizada de forma a permitir a parada de veículos, de maneira semelhante a um “paire ônibus” (área de embarque e desembarque de passageiros de ônibus), autorizando os motoristas a estacionarem por até 15 minutos com pisca-alerta ligado. Entretanto, o que se vê ali na prática são carros estacionados em fila, por longos minutos (às vezes sem ninguém dentro, como se vê nessas fotos), colocando a vida de ciclistas em risco por terem que se deslocar na contramão. Até táxis chegam a estacionar nesse espaço. Como se não bastasse, os motoristas das vans que transportam alunos estacionam sobre a ciclovia e ainda ameaçam de agressão os ciclistas que reclamam (veja aqui).

A necessidade de atravessar o “perigosíssimo” território da ciclovia seria resolvido com um funcionário da escola segurando o trânsito de bicicletas quando necessário, como é feito em locais onde as crianças precisam atravessar a via de automóveis (por exemplo, em frente ao colégio Bandeirantes, não muito longe dali).

É incrível que em pleno século XXI tenhamos que desperdiçar energia defendendo a criação de ciclovias numa cidade onde tanta gente ainda deixa de usar a bicicleta por medo de pedalar em meio aos automóveis. Às vezes nos sentimos num Automobirassic Park, com dinossauros vociferando, ressuscitados do passado.

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Livro infantil pretende conscientizar sobre bicicleta como transporte
A criança e a bicicleta

Antes e depois

Veja através do Google Maps como era a R. Dr. Albuquerque Lins antes da implantação da ciclovia, no exato local onde a menina está pedalando na foto à esquerda. Qual é a cidade que queremos? Que cidade nossas crianças merecem? Pense nisso.

Menina pedala em ciclovia da R. Dr. Albuquerque Lins. Foto: Alex Gomes
Menina pedala em ciclovia da R. Dr. Albuquerque Lins. Foto: Alex Gomes


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16 comentários em “Ciclovias devolvendo as ruas às crianças

  1. Aqui em Palmas-TO, pouco incentivo pra pratica de andar de bicicleta, ciclovia não tem integração Com quem sai dos Bairros afastados ao centro, Tem muita gente que usa bicletas para ir trabalho, andando mas de 10km Com um pedaço ou um 2km de ciclovia, depois na rua mesmo ou pela encosta das avenidas, falta incentivo, reconhecimento de fazer melhor pelos ciclistas…

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  2. É preciso insistir pra quebrar a resistência de quem se quer reflete nos benefícios naturais da ciclovia. Força a todos os ciclistas e idealistas da causa.
    Ah! Eu ainda não tenho bicicleta.

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  3. Sim, reservar espaço por meio de ciclovias é excelente incentivo aos usuários de bicicleta, em especial às crianças e aos novos usuários que desejam trocar o carro pela bicicleta e não têm experiência no compartilhamento da via. Apenas uma ressalva, considerando a realidade da capital federal. Aqui, a quantidade de ciclovias aumentou, mas com falhas graves como descontinuidade, ausência de iluminação, ausência de sinalização voltada aos motoristas, escassez de campanhas educativas, bloqueios e invasões das ciclovias por motoristas imprudentes. Por conta disso, acabo fazendo caminho alternativo, sem ciclovia, ao levar meus meninos de 5 e 6 anos para a escola e outros locais. Evitamos a ciclovia em razão das inúmeras falhas. Outro problema a ressaltar é a falta de educação por parte de alguns ciclistas, que passam bem rápido e assustam pedestres que recorrem à ciclovia por falta ou péssimas condições das calçadas.

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    1. De fato, em vários locais aqui no DF caberiam ciclofaixas ou vias compartilhadas, bastando diminuir a velocidade máxima das vias secundárias. As ciclovias/calçadas são muito interrompidas, mudando de lado e obrigando o usuário (ciclista e pedestre que também as usa, como dito acima) a atravessar a rua toda hora.
      As ciclovias do Eixo Monumental são bem melhores, até a Torre de TV, mas não oferecem ligação para as ciclovias das Asas Norte e Sul, e nem diretamente para o restante da Esplanada dos Ministérios, além de ser uma escuridão à noite. Essas porém são mais fáceis de corrigir.
      Ainda bem que temos aqui gente competente compromissada com a mobilidade por bicicletas! 🙂

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  4. Um órgão de segurança contra uma ciclovia… tá tudo ao contrário mesmo viu!

    Mas eu fico preocupado com uma coisa: se esta demanda reprimida não começar a usar logo estas novas ciclovias, a turma da carrocracia vai começar a questiona-las, e dai pra este espaço voltar a ser faixa de rolamento ou estacionamento será um pulo 🙁

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  5. Só isso, já justifica qualquer esforço, para diminuir a circulação de carros particulares na cidade. Quem é da minha época, que teve o privilégio de jogar futebol, vôlei, taco, queimada em frente de casa, sabe do que eu estou falando. Não que eu tenha a ilusão de ver isto novamente… Mas quando um novo semáforo é implantado no bairro, não é sinal de progresso; é sinal de excesso de carros.
    Transporte Público e Transporte Não-Motorizado são a solução.

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  6. Sou a favor das ciclovias.
    Mas quero chamar a atenção para um comportamento comum nas ciclovias de lazer: o desrespeito aos pedestres, pelos ciclistas. Não bastasse o semáforo vermelho, ainda tem o pessoal com uma placa escrito “Pare”. O que mais falta para alguns ciclistas deixarem de achar que tem prioridade sobre o pedestre neste caso ?

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    1. Simples: Folgados exitem sobre qualquer modal. Seja o taxista que se joga no acostamento para deixar o passageiro, o motorista de ônibus que avança como um mastodonte sobre todos os menores ou até o ciclista que sempre acredita que “dá tempo”. Algumas pessoas se acham acima de regras e convenções e, quando têm a habilitação cassada, sofrem um “acidente” ou levam um safanão, se sentem injustiçadas e responsabilizam a má sorte.

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    2. Tenho percebido isso tb aqui na ciclofaixa de lazer em Ribeirão Preto. Ciclistas simplesmente não respeitam os pedestres. Educação no trânsito deve ser para todos.

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      1. Acredito que melhor do que generalizar seria observar se são mesmo todos ou se é uma minoria que chama mais a atenção. E sim, tem razão sobre a educação. A ciclofaixa é um instrumento para colocar conceitos educativos de compartilhamento da via e outros mais em prática. Possivelmente cada vez menos casos de desrespeito sejam observados de agora em diante, na ciclofaixa e fora dela.

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