Prevista desde 2015, ciclovia poderia ter protegido menino atropelado por ônibus em São Paulo
Local onde garoto de 6 anos morreu atropelado tem projeto de ciclovia desde 2015, mas nova lei pode impedir que seja construída
O garoto de 6 anos atropelado por um ônibus em São Paulo poderia não ter morrido se a ciclovia prevista para aquele local desde 2015 tivesse sido implantada. Mas a Lei Anticiclovia, sancionada por João Doria (PSDB) na semana passada, pode impedir que ela seja construída.
Estevão Rodrigues da Silva andava de bicicleta com seu pai no fim da terça-feira (14), quando caiu na Avenida Senador Teotônio Vilela e foi pego pelas rodas traseiras do veículo pesado. Por falta da estrutura e pelo comportamento agressivo de quem dirige nessa avenida, quem pedala acaba recorrendo às mal cuidadas calçadas, com buracos, postes, árvores e, claro, pessoas caminhando (situação que, de acordo com o Contran, deverá resultar em multa, não importando a motivação).
“Estamos todos consternados com a situação. Uma criança de apenas 6 anos perdeu sua vida por conta da falta de estrutura cicloviária”, afirma Paulo Alves, do coletivo Bike Zona Sul. “O trecho seria a última parte para concluir a estrutura, que ligaria a ciclovia que só existe entre o Terminal Varginha e a esquina com a Belmira Marin. Quem chega nesse ponto deve enfrentar a avenida ou ir pelas calçadas até a Ciclovia da Av. Atlântica.”
Projeto pronto
Alves conta que o trecho onde ocorreu o atropelamento já possui projeto de implantação, apresentado em reuniões com coletivos regionais na Câmara Temática da Bicicleta. “Mas alegando falta de verba, a prefeitura não concluiu quando entregou os primeiros quilômetros em 2016 e a gestão atual também não realiza nenhuma iniciativa para tirar a obra do papel”, relata.
“A ciclovia deveria seguir pelo canteiro central da Av. Atlântica, passando pelo Passa-rápido do Rio Bonito, onde existe o maior entrave, que é a construção de um muro de arrimo necessário para comportar a faixa das bicicletas, já que nesse local as pistas dos carros tem um desnível em cada sentido e um canteiro com um barranco muito alto, onde deveria existir a ciclovia. Por fim, a estrutura deveria seguir passando em frente ao local do atropelamento até a Belmira, onde se encontra com a ciclovia existente. É um trecho de uns dois quilômetros que serviria conexão de bairros como Rio Bonito, Grajaú, Vila São José, servindo como rota segura tanto para quem se desloca para o Socorro e Santo Amaro, quanto para quem segue para os bairros ou pra conhecer o Pólo de Ecoturismo de São Paulo em Parelheiros, local onde muitos ciclistas visitam os recursos naturais da cidade fomentando o cicloturismo. É muito urgente a implantação dessa importante ciclovia.”
Em encontro com ciclistas em outubro do ano passado, João Doria afirmou que não investiria em novas ciclovias, a não ser que empresas se interessassem em financiar essa expansão em troca de publicidade. A manutenção também aconteceria apenas com dinheiro da iniciativa privada. Na ocasião, Doria se mostrou confiante de que surgiriam muitos interessados, garantindo que “não seria preciso um plano B”. Entretanto, mais de dez meses de gestão se passaram sem que essa discussão fosse retomada ou que alguma empresa se oferecesse voluntariamente.
Apesar de não haver dinheiro para ciclovias, a prefeitura pretende usar R$ 310 milhões dos cofres da cidade em um programa de recapeamento, além de pedir um empréstimo de um bilhão de reais para expandir essa ação, alegando que asfalto seria um “investimento social”. Enquanto isso, proteger a vida de quem se desloca em bicicleta ainda é considerado um “gasto” pela atual administração.
Lei Anticiclovia pode impedir implantação
A chamada Lei Anticiclovia, criada pela “Bancada do Retrocesso Viário” na câmara e sancionada pelo prefeito João Doria, pode impedir que essas e outras estruturas de proteção ao ciclista sejam criadas na cidade – mesmo que a prefeitura porventura as deseje.
A nova Lei altera a definição legal do Sistema Cicloviário da cidade, determinando que qualquer nova estrutura tenha estudos de demanda, de viabilidade e de impacto viário, além de priorizar as pouco eficientes ciclorrotas em detrimento das ciclofaixas.
Embora uma morte como a do garoto Estevão deixe clara a necessidade de uma ciclovia, um estudo de demanda pode ser usado para alegar que a baixa utilização atual da avenida por pessoas em bicicletas – obviamente, pelas condições agressivas de tráfego – não justificaria a implantação. Um estudo de “viabilidade” poderia ser utilizado para negar o investimento necessário que, visto como “gasto” e “desperdício”, seria considerado alto. E uma possível redução da largura das faixas de rolamento ou transformação de espaço ocioso de estacionamento em espaço útil de circulação de bicicletas poderia ser visto como um “impacto viário” inaceitável para quem ainda defende que o privilégio do automóvel na cidade seja mantido. Ainda que ao custo de vidas.
Entenda aqui por que essa Lei é tão preocupante.
Na Holanda, ciclovias vieram para proteger as crianças
Considerada uma das nações mais receptivas a ciclistas do mundo, a Holanda conquistou suas ciclovias por um desejo de mais segurança para suas crianças, como mostra este minidocumentário. Em 1971, com o uso do automóvel em franco crescimento – e as mortes no trânsito também – uma onda de protestos varreu as ruas para pedir às autoridades que encontrassem soluções para parar o massacre de crianças. O mote da campanha era “stop kindermood” (algo como “pare o infanticídio”).
Na mesma época, as próprias crianças bairro De Pijp, na capital Amsterdam, iniciaram um movimento para mudar o perfil das ruas, na época saturadas de buzinas e motores, lixo nas esquinas e perigo constante para chegar de um lado ao outro das vias, que ficavam atravancadas de carros estacionados e engarrafados, sufocando o espaço já estreito. As famílias com filhos não tinham outra escolha senão mantê-los em casa para ver TV, em apartamentos apertados, porém densamente povoados. Alguma semelhança com as nossas cidades atuais?
Percebendo que o intenso tráfego motorizado as impedia de viver sua infância e, pior, trazia risco de machucá-las, as crianças questionaram os adultos e exigiram que os carros saíssem dali, como mostra este vídeo. Mais de 40 anos depois, as ruas não só daquela localidade, mas de praticamente toda a cidade, têm circulação segura de pedestres e ciclistas e, sobretudo, são locais de convivência humana. É possível brincar, conversar e passear sem que a mobilidade urbana seja comprometida. A capital holandesa é, hoje, um dos referenciais mundiais de eficiência no transporte graças ao equilíbrio real entre o uso de bicicletas, carros, transporte público e deslocamentos a pé.
Talvez, quando aplicarem as multas para os pedestres e ciclistas, sobre algum dinheiro para investir nas ciclovias. O lado bom dessa multa é que haverá debate sobre o uso das rodovias com placas R12 e a liberação das mesmas. Não tem uma única vez que eles [esses políticos ao tentarem constranger o povo] acabam sofrendo um viés pior do que a solução apresentada [imposta].
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