Foto: Willian Cruz/VdB

As cidades deixaram de ser das pessoas para serem dos automóveis

Uma reflexão sobre como “perdemos” as cidades para os carros – e um convite para mudar essa realidade.

As cidades já foram mais humanas. As pessoas se cumprimentavam na rua, mesmo as que não se conheciam. Havia gentileza. Olho no olho, espaços para as pessoas, praças, parques, árvores, aves, flores e sorrisos. Então veio o carro, com tudo de bom e de ruim que ele representa.

Árvores foram derrubadas, rios foram sepultados e as praças e os caminhos foram cobertos por asfalto, o chão escuro e estéril que sinaliza o território reservado para as máquinas e proibido para as pessoas. As que se fecharam dentro do metal e dos vidros escuros começaram a ver as demais – em outras latas vedadas ou mesmo a pé atravessando a rua – como simples obstáculos em seu caminho, atrapalhando seu trajeto.

Não são mais as pessoas que foram um dia. As que estão dentro das bolhas querem chegar depressa a todo custo, maldizendo os obstáculos vivos que lhe cruzarem o caminho. As que circulam livres, têm que cruzar o território estéril sem que as primeiras as vejam, já que aumentam sua velocidade para assustá-las, rugem motores, mugem buzinas, gritam com a borracha no chão áspero: “saia da frente! o território preto não é para você!”

As crianças não podem mais brincar nas ruas, não sabem mais o que é ir de bicicleta até a casa dos amigos, não sabem pular corda e não saem para tomar um sorvete sozinhas. Os novos donos da cidade, vestidos de metal, vidro e fumando combustível, não as permitem.

Esses mesmos novos donos da cidade também têm sua prole, mas poucos percebem a liberdade que foi tomada de seus filhos para que eles próprios tenham seu luxo e conforto. Isolam suas crianças em espaços delimitados, sendo levadas de um espaço a outro dentro dos monstros de metal que vivem no território preto. Fora deles, a criança não pode cruzar essas terras.

As cidades foram feitas para as pessoas. Os carros vieram depois e deformaram os espaços urbanos. Olhe da janela agora e veja quanto espaço das ruas é reservado para a circulação das pessoas e quanto dele está disponível para os automóveis. Se a cidade é feita para a circulação motorizada, a tendência das pessoas será inevitavelmente essa – e o resultado é o que conhecemos como hora do rush (das 7 da manhã às 10 da noite).

Em vez de perceber no que nossa cidade se tornou e contribuir para torná-la um lugar melhor para nós e nossos filhos, usando alternativas ao automóvel sempre que possível, a maioria das pessoas pensa apenas em comprar um carro mais confortável e se isolar dos problemas. Ligar o ar condicionado, fechar os vidros, aumentar o som e ignorar o que está do lado de fora, fazendo de conta que não está lá. Em outras palavras, fugir. Grande solução.

Sua cidade depende de você

Se você cansou de sua cidade, faça o possível para torná-la melhor. Um momento em que seu carro te deixa na mão, por exemplo, pode ser uma oportunidade para ver a cidade de outro ângulo, em vez da viciada experiência de se trancar em um ambiente climatizado e se isolar do mundo e das pessoas até chegar a outro local de confinamento.

Por sinal, foi exatamente o que aconteceu comigo: em um dia que o carro quebrou, resolvi usar a bicicleta para ir ao trabalho e vi que não era tão complicado quanto parecia. Foi aí que tudo começou a mudar. A cidade mudou para mim, e eu mudei para a cidade e para os que estão à minha volta.

Não podemos viver confinados em bolhas de metal. As ruas são suas também. Saia a pé, sinta o sol, olhe para o céu. Há quanto tempo você não repara nos formatos das nuvens, no som dos pássaros e nas plantas que insistem em nascer em qualquer buraquinho da calçada, resistindo à petrificação da cidade?

Viva a vida, seja livre!

18 comentários em “As cidades deixaram de ser das pessoas para serem dos automóveis

  1. Ontem 27/04 foi meu aniversário e eu ia fazer um trecho de carro para encontrar meus amigos só que começou a apresentar defeito, então guardei o carro e fui de bike dobrável!

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  2. E ainda digo mais… cada vez mais os enlatados competem entre si pra quem tem o carro mais potente, maior, mais alto, etc… como carros blindados trajados de esportivos ou sociais. Isso embrutece cada vez mais o ambiente e toda relação com o ser humano.
    E a copa vem ai e já ouvi que terão que tirar algumas áreas verdes do centro de SP para dar mais acesso a população, como se tivéssemos muita área verde aqui no centro.
    Como será o futuro diante disso tudo ? como poderão nossos filhos e netos conviver numa cidade feita de lata, pedra e rivalidade assim ?

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  3. Foi exatamente como aconteceu comigo, um dia meu carro não passou na “controlar” na oficina disseram que ficaria 3 dias sem o carro, foi então que o transporte de pessima qualidade me fez querer usar a bike num trajeto de 12km, com uma ponte e um viaduto….
    E hoje aqui estou, fazendo 100% tudo de bike, vendi meu carro, quitei as parcelas que restavam, e hoje vivo muito mais a cidade e as pessoas delas.

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  4. Parabéns Willie, muito bem escrito!
    Como sempre vou cantarolando mentalmente minhas favoritas fiquei imaginando como seria a bandeira do Território Preto, a Constituição eu já conheço, mas vou insistindo Clandestino(Manu Chao):

    Solo voy con mi pena
    Sola va mi condena
    Correr es mi destino
    Para burlar la ley
    Perdido en el corazón
    De la grande Babylon
    Me dicen el clandestino
    Por no llevar papel
    Pa’ una ciudad del norte
    Yo me fui a trabajar
    Mi vida la dejé
    Entre Ceuta y Gibraltar
    Soy una raya en el mar
    Fantasma en la ciudad
    Mi vida va prohibida
    Dice la autoridad
    Solo voy con mi pena
    Sola va mi condena
    Correr es mi destino
    Por no llevar papel
    Perdido en el corazón
    De la grande Babylon
    Me dicen el clandestino
    Yo soy el quiebra ley
    Mano Negra clandestina
    Peruano clandestino
    Africano clandestino
    Marijuana ilegal
    Solo voy con mi pena
    Sola va mi condena
    Correr es mi destino
    Para burlar la ley
    Perdido en el corazón
    De la grande Babylon
    Me dicen el clandestino
    Por no llevar papel

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  5. Boa tarde.

    Excelente artigo, Willian Cruz; congratulações!

    Mas, se me permite, discordo parcialmente de você quanto ao seu comentário quando se refere aos deveres dos ciclistas e pedestres; ora, se os automóveis (condutores) são monstros – do que não discordo – nós, ciclistas e pedestres, não devemos tanto a eles como você diz, afinal são eles portadores de toneladas de aço prestes a fazer um estrago enorme, como o fazem de fato! Nós podemos trafegar de forma defensiva, como já fazemos devido à enorme desvantagem nossa em relação a eles, mas não penso que deveríamos ser tolhidos por leis que continuam, ainda, favorecendo muito aos referidos automóveis. O grande problema do trânsito é muito mais grave do que se pode aferir relativamente aos pedestres e ciclistas; os condutores de automóveis matam-se uns aos outros também. Eu digo sempre: não falta educação para o trânsito, simplesmente falta educação, para tudo! Enfim, faz-se necessário mudar o paradgma descrito por você, em seu artigo, prioritariamente quanto aos automóveis, para depois estender regras aos ciclistas e pedestres. Podemos nós, ciclistas e pedestres, ser imprudentes algumas vezes, pois temos consciência de que não provocaremos enormes estragos, mas o condutor de automóvel não é imprudente, é negligente(!), em seu pior sentido, o que o encaminha à neo-marginalidade.

    Paz e Amor a todos.

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  6. Meu amigo, se me permite mais um comentário, é preciso ficar claro que, num determinado momento, o automóvel foi uma solução às necessidades das pessoas.
    Em pequeno número, e para atividades bem específicas, o automóvel e útil. Levar uma família inteira à praia com bagagem pode significar o uso de 1000kg de metal que queima carbono e anda rápido.
    Acontece que a banalização do uso do automóvel fez com que às pessoas o utilizassem para simplesmente tudo.
    O mercado percebeu e se vale disso para bombardear o consumidor. As ditas vantagens do início caem por terra numa cidade atravancada, desumana, cinza, poluída e feia, embora muita, mas muita gente não tenha se dado contra disso.

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  7. Willian, mais uma vez, um ótimo texto que exprime de uma forma bonita e genuína aquilo que somente quem vê a cidade sob outra óptica é capaz de escrever. Um excelente final de semana!

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  8. Só sugiro que troque o termo “território negro” que não cabe aqui e em lugar algum.

    De resto, o texto está ótimo

    Abs

    Polêmico. O que acha? Thumb up 2 Thumb down 6

    1. André, não entendi muito bem em que o termo lhe incomoda, já que é uma simples referência à cor do asfalto. Se ele fosse cor-de-rosa, seria o território rosado; sendo vermelho, território rubro…

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      1. [Comentário oculto devido a baixa votação. Clique para ler.]

        Esse comentário não tem feito muito sucesso. Thumb up 1 Thumb down 7

        1. Sergio, continuo achando válido o uso do termo, que não é exclusivo para denominar uma tonalidade de pele ou um grupo étnico (não gosto de chamar de raça). Pode ser utilizado para retratar uma coloração do que quer que seja. Veja alguns exemplos:

          Bandeira negra – símbolo do Anarquismo
          Barba Negra – pirata inglês do início do século XVIII
          Buraco negro – concentração extremamente densa de matéria no espaço
          Floresta Negra – cordilheira do sudoeste da Alemanha (além de um bolo muito bom)
          Quinta-feira Negra – nome pelo qual ficou conhecido o dia da grande quebra da bolsa de Nova York, em 1929, marcando o início dos 12 anos da Grande Depressão

          Deveríamos mudar as denominações para Bandeira Preta, Barba Preta, Buraco Preto, Floresta Preta, Quinta-feira Preta e assim por diante? Desculpe, mas discordo. Isso não tem nada a ver com preconceito, racismo e tantos outros males. É desperdiçar nossa energia na direção errada.

          Entretanto, para não continuarmos com essa discussão sem muito sentido, mudarei o termo no texto para “preto”, já que o termo “negro” ofende alguns leitores.

          Grande abraço,

          Willian Cruz

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          1. Boa tarde.
            Embora não seja o esse o objeto da publicação, devo fazer-lhes algumas observações.
            De nenhum modo entendo como pejorativo o uso de “território negro” pelo Sr. Willian; que isso esteja claro.
            Porém, nos casos aventados, o uso do termo “negro(a)” é, historicamente, pejorativo; todos os títulos citados – Bandeira Negra, Buraco Negro, etc. – foram cunhados quando racismo e segregação eram piores do que são hoje.
            Quanto a isso não se pode duvidar, mas infelizmente, inocentemente (ou não), usa-se esses termos muito ainda.
            Agradeço-lhes a atenção.

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  9. Olá, Esta semana fiquei sabendo sobre um evento que acontecerá na data do aniversário de São Paulo chamado de Bike Tour, que visa divulgar e incentivar o uso da bicicleta e a “vontade de viver de forma mais saudável, combinando o prazer de um vulgar passeio com a prática de um exercício físico” como descrito no site do evento (http://biketour.sapo.pt/index.php).

    Fico animado com este tipo de projeto e com um evento que promove meios de transporte alternativos e uma busca por uma vida mais saudável. Sou ciclista e utilizo a bicicleta tanto como meio de locomoção, para ir de casa ao trabalho, quanto como forma de lazer, porém me preocupa muito a forma em que o evento divulga e promove a bicicleta numa cidade tão perigosa como São Paulo.

    Fiquei sabendo que todos os 5.000 participantes receberão um KIT contendo uma bicicleta, uma mochila e um capacete.

    Gostaria de saber se as bicicletas vem equipadas com, campainha, sinalização noturna dianteira, traseira, lateral e nos pedais, e espelho retrovisor do lado esquerdo, como mandam as leis do Código Nacional de Trânsito. Gostaria de saber também, se os participantes além dos KITs, receberão também algum informativo educacional referente aos direitos e deveres do ciclista no trânsito.

    Acho importante divulgar a bicicleta em eventos e campanhas que atinjam o maior número de pessoas possíveis, mas me interessa e me preocupa muito também saber que tipo de ciclistas estamos colocando nas ruas!

    Hoje sabemos da ignorância dos motoristas que nem sempre tratam os ciclistas como deveriam ser tratados, mas sempre temos que lembrar que além de direitos, temos deveres, e não gostaria de ver 5.000 kamikazes de duas rodas armados de bicicletas irregulares e sem a devida educação se arriscando pelas escuras e cruéis ruas de são Paulo. É importante que os organizadores tenham consciência de que apesar do objetivo do evento seja promover uma vida mais prazerosa e saudável, podem também estar colocando em risco a vida dessas pessoas, queimando a imagem de ciclistas responsáveis e alimentando ainda mais a fúria de motoristas desrespeitosos.
    Gostaria de saber a opinião de vocês.
    Abraço,

    Adriano

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