Comentário de uma motorista

Veja o comentário que a Ju Flesch escreveu no texto onde explico por que a morte de Antonio Bertolucci não foi acidente. Merece a leitura.

Às vezes recebo comentários aqui no Vá de Bike que me deixam indignado, como este. Mas muitos mais me trazem um sorriso ao rosto e às vezes até me emocionam.

Durante a manifestação em homenagem a Antonio Bertolucci, morto em 13 de junho por um ônibus fretado na região da Av. Sumaré, em São Paulo, a Ju Flesch enviou o tweet abaixo:

[blackbirdpie url=”https://twitter.com/juflesch/status/80406640867807232″]

Mas o que me emocionou foi o comentário que ela escreveu no dia seguinte, no texto em que explico por que a morte de Antonio não foi acidente. Dispensa explicações:

Antes de mais nada, desculpa pelo tamanho do comentário! Talvez eu tenha exagerado, mas é necessário falar.

Que as pessoas tiram habilitação sem receberem uma preparação decente, isso é fato!

Tirei minha carteira de motorista há 4 anos atrás. Na auto-escola, me ensinaram a furar o sinal vermelho sem levar multa. Bicicletas? Nem menção. Como fazer uma ultrapassagem segura? Também não! Não é o máximo? Essa lei do 1,5 m praticamente não existe, porque não convém a ninguém motorizado conhecê-la.

Mas isso não é desculpa!
Posso ser sincera? Só fui tomar conhecimento dessa lei por que o atropelamento do Massa Crítica em Porto Alegre aconteceu. Lamento muito, precisei que vocês gritassem a plenos pulmões. Mas então parei para pensar, nunca PRECISEI saber dessa lei para começo de conversa. E porque nunca precisei? Porque sempre tive medo de atropelar alguém, então eu sempre mantive distancia de ciclistas e motos na hora da ultrapassagem de qualquer jeito. Nunca precisei que a lei me dissesse isso, sei pensar por conta própria para saber o que é seguro ou não.

Vejam, não estou dizendo que não preciso saber das leis. Estou dizendo que não dependo das leis para ter noções de segurança.

Quero dizer, p****, senso de segurança é algo que deveria ser intrínseco. Não DEVERIA PRECISAR ser ensinado na auto-escola, na sociedade ou nas leis. É algo que deveria vir de cada um. Infelizmente não vem, então no fim dependemos mesmo das leis e das auto-escolas. Mas não deveria ser assim. Precisamos mesmo de uma lei que estabeleça “não atropele” para saber que não se deve atropelar?

Antes eu prezava apenas pela segurança envolvendo eu e o ciclista. Depois do que aconteceu no Massa Crítica, aprendi a dirigir pelos ciclistas e pelos outros, não só pela segurança deles quando eu passo, mas também pela segurança deles quando qualquer carro passa. Uma pena que eu precisasse disso para evoluir, mas que bom que pelo menos algo de bom aconteceu!
Percebi que o transito é uma coisa dinamica, ele flui, ele tem um ritmo, ele depende de toda uma sincronia para ser seguro. O que isso significa? Significa, por exemplo, que não é porque eu estou na pista do meio e a bicicleta na pista da direita, que eu não vou me preocupar com ela. Preciso ficar atenta, porque se vem um carro pela pista da direita com intenção de ultrapassá-la, cabe a mim diminuir a velocidade e dar passagem ao carro para que ele entre na minha pista, na minha frente. Assim ele ultrapassa a bicicleta com uma distância segura, sem tirar fino. Isso é sincronia, estar atento a todos em todas as pistas e saber tomar a decisão certa no momento certo. Outro exemplo, se a bicicleta está na minha frente, em uma avenida furiosa, e eu não estou com pressa e nem necessidade de ultrapassá-la, custa nada eu ficar atrás dela e segurar o trânsito para que outros carros não tirem fino. Ou seja, não só cuido para não causar um acidente, aprendi a cuidar para que outros também não causem.
Ajudei também meus pais a dirigir respeitando as bicicletas e tento divulgar ao máximo entre colegas.

Eu estava contando ontem isso ao Phil, e achei importante contar a vocês para que saibam que o movimento de vocês tem sim um efeito positivo sobre os motoristas. Muitos ainda são avessos às bikes, isso é algo que vai ser difícil vencer, mas pouco a pouco as pessoas estão se conscientizando. Começou conscientizando a mim, hoje meu pai, minha mãe e até a minha irmã, que em breve deve tirar a carta, aprenderam com vocês.

Queria trocar o carro pela bike, porém tão cedo acho que não farei isso, infelizmente. Fiquei de te mandar um e-mail com dúvidas, mas acabei adiando a ideia temporariamente, confesso. Tenho medo, mas não porque andar de bike é perigoso. Tenho medo porque sei do que motoristas são capazes e sei das barbaridades que eu vejo eles cometendo quando estou dirigindo minha “armadura de lata”. Se o carro é uma arma, infelizmente não estou pronta para sair de casa desarmada. Meu carro é o meu porto seguro depois de um dia estressante, é um conceito difícil de largar. Faço meu possível, e sou a favor de termos mais bicicletas nas ruas e menos carros. Vou lutar por um trânsito mais humano junto com vocês.

Ontem eu twitei falando que, depois de encarar um engarrafamento pesado, ouvindo a Kiss FM, tocou a música “I Want to Ride My Bicycle”, e brinquei falando que isso era um sinal. Conversei com meu amigo Phil sobre bicicletas e logo depois li o tweet anunciando a fatalidade. Pois bem, coincidencia ou não, depois lendo as matérias, me dei conta de que essa música tocou próximo ao momento em que o ciclista Antonio Bertolucci foi declarado morto. Se isso não é um sinal, eu não sei o que é.

Ver a foto da ghost bike ontem me deixou com um vazio enorme. Me deixou extremamente emocionada, e achei lindo o que vocês fizeram. Voces fazem algo que nem motorista, nem motoqueiro, nem mesmo os pedestres fazem, que é se unir por uma causa tão nobre. Para os outros, o trânsito é cada um por si e Deus por todos. Não pode ser assim.

Só isso, um desabafo.

Peço desculpas por escrever tanto. Ontem eu te mandei um tweet falando sobre como o movimento de vocês estava mexendo com o coração dos motoristas, porém 140 caracteres não foram suficientes para expressar o que eu senti, por isso eu vim aqui hoje. Ainda tinha tudo isso entalado na garganta para dizer.

Não quero vir aqui para cantar glórias. O Phil me disse que mais pessoas deveriam pensar como eu e, sinceramente, não quero ouvir isso de novo. Não sou a melhor motorista do mundo e estou longe de ser.

Só postei tudo isso porque vocês parecem exaustos de lutar por algo que dia a dia parece cada vez mais ignorado. Cada atropelamento parece uma causa perdida. Só quero dizer que não desistam. Pouco a pouco vamos estabelecer uma cultura de bom convívio, e se não viverei para ver esse dia chegar, farei então pelas próximas gerações.

Quero que saibam que o movimento de vocês mobiliza os motoristas, não desistam dessa causa, nunca! Motoristas anônimos estão sempre aderindo. Obrigada por combaterem os males do transito com amor, e obrigada por me ensinarem a fazer o mesmo. =)

Obrigado à Ju e a tantos outros que me escrevem elogiando, incentivando e dando sugestões. E mesmo aos que criticam ou demonstram opiniões contrárias, pois muitas vezes me fazem pensar de outra forma ou abordar pontos nos quais não havia pensado até então. Obrigado também a quem me escreve avisando de erros de digitação nos textos, muitas vezes escritos com pressa e indignação demais, como o Alexandre Cruz e o Palmas. 🙂

Mesmo que por falta de tempo não consiga responder algumas mensagens ou tweets, sempre leio todos. Mensagens assim me incentivam a continuar lutando por uma cidade mais humana, mesmo quando parece que nada mais vai surtir efeito.

Obs.: não estou pedindo para escreverem jogando confete, estou mesmo só agradecendo! 🙂

Abraços a todos.

25 comentários em “Comentário de uma motorista

  1. Sou ciclista e sem automóvel há sete anos por motivos econômicos, como não avanço vermelho, contramão e calçadas, não seria demais cobrar o mesmo de outros ciclistas? É demais isso?

    Thumb up 0 Thumb down 0

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *