Muitos ciclistas usam a calçada por serem ameaçados pelos motoristas quando tentam usar a via. Foto: Willian Cruz

Quando a bicicleta subversivamente passa a fazer parte do sistema

Aline Cavalcante fala sobre infrações de ciclistas, comparando a situação de alguns anos atrás com a atual, em que a bicicleta começa a ser legitimada como parte do sistema de transportes. E faz um relato sobre a alteração de seu comportamento no trânsito, motivada por essa mudança.

Recentemente participei como palestrante da Adventure Sports Fair e a parte mais interessante desse tipo de experiência é, sem dúvida nenhuma, ouvir as mais diversas histórias das pessoas e suas bicicletas. Alguns pontos são sempre bastante polêmicos e controversos, inclusive entre os ciclistas mais experientes. É sobre alguns desses pontos que vou falar agora.

Alguns anos atrás

Quando eu comecei a andar de bicicleta na cidade, em 2009, ficava muito insegura em dividir espaço com os carros, não sabia direito como me posicionar, nem se podia pedalar entre eles. O barulho do trânsito assustava, bem como a real possibilidade de morrer atropelada. Meus primeiros passos, digo, pedaladas, foram pelas péssimas calçadas e, vez ou outra, me arriscando no asfalto.

Se hoje os paulistanos têm se mostrado cada dia mais dispostos a discutir o uso da bicicleta, há alguns anos era bem diferente. Não existiam ciclofaixas de lazer, ciclorrotas, mídia, protestos, sustentabilidade, gente famosa nem políticos falando sobre o assunto. O ciclista era muito mais invisível e incompreendido do que hoje.

Atualmente pedalo com bem menos freqüência pela calçada – exceto em situações de perigo iminente – mas não me sinto no direito de recriminar quem o faz. Como apontar o dedo e dizer que o lugar de ciclista é na rua quando nas ruas nos sentimos ameaçados e “invasores” do espaço do carro? Como exigir que um ciclista cumpra a lei, se a lei não está sendo cumprida em favor dele? É difícil julgar.

O uso da calçada é só um dos exemplos de um universo imenso de “infrações” cruelmente jogadas no colo dos ciclistas, onde a intenção é colocar no mais frágil, vulnerável e desprotegido a responsabilidade destrutiva do outro.

É certo cometer infrações? Não.

É aceitável ou justificável? Nem sempre.

É compreensível? Sim!

Além da desinformação generalizada (tanto do poder público, mídia, motoristas, pedestres e dos próprios ciclistas) sobre legislação de trânsito e a segurança real de quem usa a bicicleta, existe o fato das nossas ruas e cidades terem sido (re)construídas e (re)planejadas para dar vazão ao número cada vez maior de automóveis em circulação. Nesse contexto, quem utiliza bicicleta é, aos olhos da sociedade, um pobre e fracassado que ainda não tem um carro.

Com o advento das discussões sobre mobilidade urbana, da falta de espaço, congestionamentos, escassez de combustível, poluição, mortes e o real custo das coisas, os ciclistas ganharam um novo “status”:  São agora uma parte da solução.

Houve aí uma sensível e importante mudança de paradigma, pois quem pedala como meio de transporte passou a ser encarado de outras maneiras, desde um maluco-revoltado-subversivo-ao-sistema até um riquinho-consciente-da-moda.

Fato é: a partir do momento que a sociedade e órgãos de trânsito passam a entender novamente a bicicleta como um veículo, os ciclistas – por tabela – voltam a ter direitos e deveres, com necessidade de cumprir regras e normas para circular nas vias sem colocar a vida de ninguém em risco (inclusive e principalmente a própria).

Mudança de atitude e efeito cascata

A Secretaria Municipal de Transportes (SMT) e a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), que são os órgãos responsáveis pelo trânsito de São Paulo, têm feito algumas ações (ainda que tímidas e desconectadas) de bastante importância para garantir a vida dos ciclistas.

Depois de ler e reler diversas faixas espalhadas pelas ruas com frases incisivas para o motorista priorizar e proteger o ciclista, senti que estamos mesmo vivendo num momento ímpar e propício à transformação, por isso resolvi mudar aos poucos algumas atitudes minhas. Essa iniciativa é particular e motivada num voto de confiança que quero dar à administração pública, mesmo desconfiada do ano eleitoral e com plena consciência sobre nosso atraso histórico.

Apelo por respeito à faixa de pedestres em Curitiba. Foto: Aline Cavalcante

Voltei a exercitar a calma e a paciência no trânsito, saindo da posição de defesa e ataque constantes para a posição de equilíbrio e igualdade. A partir de agora tentarei furar menos os faróis vermelhos, parando mais nas faixas de pedestres nem que seja apenas para olhar, ter certeza que ninguém vai atravessar e continuar meu trajeto ou aguardar o tempo do semáforo mais à frente da faixa – nunca em cima dela.

Continuarei exercitando, como sempre fiz, a prioridade e respeito MÁXIMOS aos pedestres, independente da circunstância e situação.

Pedalarei com mais legitimidade e consciência sobre meus atos, tendo um pouco mais de certeza de que todos os outros envolvidos no trânsito sabem dos meus direitos em trafegar ali. Vou testar e exercitar essa mudança de postura, abordagens positivas, mesmo diante das recentes e intragáveis perdas causadas pela intolerância e omissão do poder público.

A gentileza de todos no trânsito garantirá a paz nas ruas e o direito de ir e vir com segurança e respeito. Em efeito cascata, esperamos que os cidadãos se espelhem e espalhem boas práticas, contribuindo para a diminuição das mortes e aumento do número de pessoas experimentando os prazeres da bicicleta.

Vamos tentar juntos?

64 comentários em “Quando a bicicleta subversivamente passa a fazer parte do sistema

  1. Concordo que devemos cumprir a lei da mesma forma que exigimos que a cumpram.Mas em alguns casos descumprir a lei acaba sendo uma necessidade pra garantir a segurança.E se você consegue fazer isso sem comprometer a segurança dos outros,não acho que seja tão errado.Acho que há lugares em que há a possibilidade de se pedalar pela calçada sem colocar em risco os pedestres e há situações que a bicicleta pode até avançar o farol vermelho até pra se proteger dos carros que vão sair depois em disparada,pra isso tem de haver o bom senso de não estar colocando em risco o pedestre.
    Só como exemplo,aqui onde moro tem uma avenida muito movimentada com carros,mas com largas calçadas e pouco movimento de pedestres por ter muitos galpões industriais.Qual é o melhor para o ciclista usar essa calçada sem colocar em risco a sua segurança ou a de terceiros ou tentar circular em uma avenida com transito equivalente a Marginal Pinheiros.Então acho que é questão de uma análise de cada situação em si.Porém ao ciclista cabe dizer que ele não pode tomar atitudes que coloque em risco o pedestre.

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  2. Quando tinha uns 16 até uns 19 anos, era muito arrojado no trânsito com minha bike e usava a calçada para ultrapassar carros (entre outras infrações). Não que eu fosse deliberadamente irresponsável ou não me importasse com a vida alheia (e a minha), a questão é que não parava para pensar nos riscos que assumia (era egoísta, em suma). Acreditava que meus bons reflexos bastariam para evitar acidentes, como se pudesse controlar o imprevisível e a ação das outras pessoas.

    Hoje, não muito mais velho, minha cabeça mudou completamente. Em parte por causa da lembrança dos sustos que eu levei nessa época, que no limite poderiam ter me matado ou machucado pedestres, em parte porque aprendi a perceber que à minha volta existem pessoas que podem estar distraídas, que também assumem riscos em prol da pressa (ME colocando em risco) e, principalmente, que têm o direito de viverem em paz, num mundo que já é tão estressante. Que direito tenho eu de, por exemplo, assustar ou causar problemas a uma pessoa que está indo para o trabalho, começando o seu dia? Nenhum!

    Dito isto, se por um lado entendo a dificuldade dos mais jovens para visualizar os riscos que assumem (não estou dizendo que concordo com as bobagens que vejo na rua), acho inadmissível ver um adulto agir dessa forma, seja individualmente, seja como membro de um grupo de ciclistas. E infelizmente vejo.

    Quando ando na calçada hoje, é porque a rua não me oferece o nível de segurança que julgo mínimo, mas pedalo BEM devagar e dou total prioridade aos pedestres, nem que precise ficar parado por alguns instantes. Sinceramente, me sinto muito melhor comigo mesmo sendo correto do que me sentia anos atrás, na tensão o tempo todo. Inclusive porque quando reclamo de alguém, sei que não estou sendo hipócrita, mas que procuro fazer a minha parte.

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  3. Oi Aline! Muito legal seu texto. Eu acho legal toda essa discussão sobre o ciclista contraventor e o ciclista que teme pela própria vida. As pessoas tem que entender que assim como motoristas, existem ciclistas conscientes e ciclistas babacas. O difícil é que esses ciclistas babacas acabam dificultando para os outros. Essa coisa de andar na calçada, extremamente compreensível! Não tem como querer ser herói a todo momento ou imaginar que seria romântico ser atropelado por um busão e virar mártir da causa.
    A população em geral tem que passar a apoiar os ciclistas conscientes, e os babacas tem que aprender a seguir as regras.
    Você tem razão, no entanto, em dizer que as coisas estão mudando. É uma mudança sutil, mas s;o o fato de haver a discussão é um avanço.
    Eu não vivo no Brasil há puco mais de 3 anos, e sempre que eu volto eu noto como as coisas estão mudando. E mesmo aqui, em Boise, nos EUA, onde eu vivo e faço tudo de bicicleta, ainda assim tem problemas, tem “finas” e tem o eventual motorista te xingando. Mas tem uma população que acabou se acostumando com os ciclistas e as ciclofaixas. Tem jeito. A gente tem que ir fazendo a nossa parte.

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  4. Não existe a possibilidade de se criar uma ciclofaixa em um espaço da calçada da paulista? Andei em Lyon de bike (alugada) e lá existem trechos assim.

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    1. Só se alargassem a calçada para caber a ciclofaixa, Rodrigo. Numa avenida onde passam 1 milhão de pedestres por dia contra 100 mil carros, fica claro qual espaço seria mais justo diminuir.

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  5. Aqui no Rio, quando estou a pé (o mais frequente, já que agora que estou grávida abandonei a bike), quase sempre sou atropelada por ciclistas que não param no sinal vermelho ou que, nas calçadas, correm como loucos. Fico com raiva, porque o ciclista quer direitos mas parece se fazer de besta quando se trata de seus deveres.

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  6. Aline, comecei a praticar a mesma coisa já há alguns meses … Pois percebi que saia para pedalar já de espírito armada para brigar. Isso me tornava um motorista estressado sobre uma bike. Quando percebi isso, mudei tudo, e agora, discutir, só quando cara realmente passou todos os limites. Fora isso, eu dou bom dia, boa tarde, boa noite, sinal de legal com as mãos e a vida continua. Massa o texto!! Abraços de Salvador

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  7. Uma conversa de um motorista com um ciclista

    motorista – você passou no farol vermelho
    ciclista – é para a minha segurança, sair a sua frente, e não havia pedestres
    motorista – mas você desrespeitou a lei
    cilista – e o sr nunca passou num farol vermelho de madrugada, para sua segurança?
    motorista – ???

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  8. Antigamente haviam somente pedestres. Depois vieram os ciclistas. Depois vieram os carros e com o tempo tomaram o espaço público. Devido ao grande espaço que ocupam, as velocidades que alcançam e o risco que geram aos outros cidadãos, foram necessárias diversas leis que regulamentassem sua circulação. Pedestres e ciclistas ganharam leis que não eram deles. Como cidadãos disciplinados, passaram a obedecer e aos poucos perderam mais espaço e direitos.

    A própria Aline, no seu texto, argumenta que irá respeitar as leis quando puder, indicando que há zonas cinzentas neste convivio. Sua atitude irá garantir a maior segurança aos pedestres, o que considero muito importante, mas não irá mudar em nada a relação com os motoristas. Ao menor deslize que ela cometa, como por exemplo, ter que subir em uma calçada para sua própria segurança, irá ser novamente criticada.

    A melhor discussão neste momento é como compartilharmos o espaço público e dimimuirmos as zonas de conflitos. Para isso teríamos que ter a ação de governantes corajosos em mexer na infra estrutura viária, adequar espaços para pedestres e ciclistas e compatibilizar velocidades. Se nos limitarmos em discutir como respeitar leis ultrapassadas para nossas atuais necessidades, teremos somente tímidos avanços.

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  9. Também sou contra o ciclista na calçada. Mas quando a vida está em jogo, deixamos a lei de lado. Evidentemente a calçada é do ciclista, e como um carro ao entrar numa garagem deve respeitar o pedestre, o ciclista também deve fazê-lo ao circular na calçada. O ciclista na calçada não vai andar a 20-30 km/h, mas a 5-10, e 10 já é bem rápido pra calçada ! E está bom !, seguro. Uma pessoa correndo a pé na calçada também circula a 10km/h, e o risco é o mesmo: uma trombada. Mas com certeza não uma morte como da July. Claro que no caso da July, a calçada da Paulista é complicada pra pedalar, mas estamos nos dois extremos querendo regras.
    Quem já não furou um farol vermelho aas 3 da manhã ao invés de esperar o verde ? Mas mesmo assim não roletou, olhou para os dois lados, atravessou com cautela e seguiu certo ? Bom censo e respeito acima de tudo !

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