As consequências do uso excessivo do automóvel
O questionamento ao uso dos carros não é uma simples picuinha de ativista mala. Entenda por que há críticas tão fortes ao seu uso excessivo.
Cada vez mais pessoas criticam o uso excessivo dos carros nas cidades, ainda que continuem dirigindo. E há críticas tão fortes que por vezes acabam sendo classificadas como uma “demonização do automóvel”, uma espécie de revanchismo. Mas por que tanta gente culpa o carro pela situação caótica das cidades? Vamos tentar esclarecer.
Os males do uso excessivo
Na cidade de São Paulo, 90% da poluição é causada pelos carros, dados da CETESB. Os paulistanos vivem em média dois anos a menos por causa dessa poluição, que mata quase 20 pessoas por dia, segundo o laboratório de poluição atmosférica da USP.
Há outros problemas além da poluição, sendo o congestionamento o mais óbvio deles. Crescendo a cada ano, os índices de congestionamento passaram a ser chamados de “filas”, para acalmar os motoristas, já que o problema não é resolvido. A medição oficial fica bem aquém da apresentada pelo Maplink, por exemplo. Em alguns lugares, há congestionamento já dentro da garagem do edifício.
Os espaços públicos são cada vez mais tomados pelo automóvel. Cada alargamento ou extensão de avenida, cada nova ponte e viaduto, cada túnel dedicado aos automóveis acaba por incentivar ainda mais o uso do carro, piorando o congestionamento depois de um curto período de alívio ilusório.
Esse congestionamento causa problemas diretos de saúde (e fechar a janela do carro e ligar o ar condicionado não adianta porque, mesmo filtrando o material particulado, ainda penetram no veículo gases como dióxido de nitrogênio) e com acidentes (quatro mortos por dia em são paulo – sendo um deles pedestre, que não tem nada a ver com carros ou motos – e 30 mil mortes no Brasil ao ano só nas estradas), indiretos (stress e ansiedade), econômicos (com trabalhadores que poderiam estar produzindo, vendendo, prestando serviços em vez de estar ali, com negócios que deixam de ser fechados, com reuniões adiadas, produtos não entregues, etc.) e sociais (pessoas que passam menos tempo com a família, convivem menos com os amigos, vêem menos os vizinhos, importam-se menos com as pessoas). E devo ter me esquecido de muita coisa.
O transporte coletivo por aqui tem perdido cada vez mais espaço para o uso individual: as antigas faixas exclusivas de ônibus agora são “preferenciais”, em horários específicos e dividindo espaço com táxis; os ônibus fretados, que substituíam muitos carros individuais, foram proibidos em boa parte da cidade, fazendo muita gente desistir e voltar a entupir as ruas com os carros.
O espaço público também é cada vez mais perdido para o tráfego e estacionamento de carros: praças hoje são cortadas por avenidas (exemplo emblemático é a “Praça” Panamericana, que nada mais é que uma rotatória gigante); atravessar duas quadras da Paulista leva mais tempo que fazer um retorno de carro, principalmente se o pedestre precisa cruzar a avenida; andar a pé passou a ser perigoso a cada rua que se precisa atravessar, tanto que as pessoas literalmente brigam por uma vaga *em frente* ao lugar onde precisam ir, para não terem que andar 100 metros; a área construída de muitos estabelecimentos comerciais, principalmente shoppings, costuma ter mais espaço para carros do que para pessoas; calçadas estreitas, que mal permitem a passagem de uma pessoa por vez, poderiam ser ampliadas, tomando o espaço de estacionamento, se não fosse mais importante a via asfaltada que o calçamento; calçadas “em degrau”, para facilitar a entrada de carros em garagens, impedem a passagem de cadeirantes em qualquer ladeira da cidade; as crianças têm de ficar confinadas aos muros do condomínio, ao ônibus escolar, ao carro dos pais e ao shopping center, fazendo um passeio em local aberto ser uma experiência de agorafobia e tendo que tomar cuidado até mesmo nas calçadas, porque nunca se sabe quando um carro pode emergir rapidamente de uma saída de garagem; faixas de pedestres se tornaram meramente decorativas – exceto em semáforos, onde funcionam como linha de largada.
E ainda temos as consequências sociais: o ritual de passagem para a vida adulta deixou de ser as mudanças no corpo e na voz para passar a ser a carteira de habilitação; dirigir bem passou a ser dirigir rápido e com agilidade; ter sucesso na vida passou a ser ter um carro bom, em vez de ser feliz ou ter sua própria casa (mesmo que esse carro seja financiado em quatrilhões de vezes e tenha três parcelas em atraso); a informação sobre ter um carro consta em fichas de emprego; ir de ônibus a uma festa é inadmissível; chique é a noiva chegar em carro bom, mesmo que o resto do ano ela ande a pé; trocar de carro é a meta de médio prazo de quem acabou de comprar um carro novo; manter o mesmo carro por muito tempo é sinal de estagnação; ter um carro bom é ser confiável e respeitado.
Então os carros em si são ruins?
Não, claro que não. O carro tem sim sua utilidade e é uma ótima invenção, principalmente se você precisa transportar coisas grandes ou pesadas, ou pessoas com restrições de mobilidade, bebês e idosos.
O problema está na idolatria ao carro, no excesso de veículos, na sociedade baseada no automóvel, no marketing automobilístico bombardeando incessantemente o “seu sonho” de ter um automóvel, no incentivo governamental contínuo à compra e ao uso do carro e da moto em vez de priorizar transporte de massa (trens, ônibus, metrô).
Os males causados pelo uso massificado dos automóveis constituem, sim, uma desgraça do mundo moderno. Não há como negar. E não adianta ignorar os fatos e tentar maquiar a discussão, relevante e importantíssima, como uma simples picuinha de “ciclochato”.
Faça sua parte, deixando o carro em casa ao menos uma vez por semana.
Incrível texto sobre, aprofundou todas as pesquisas que achei e abordou não só estatísticas, mas também os aspectos sociais ligados aos automóveis. Parabéns ao editor!
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Obrigado, Samuel! 🙂
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Artigo simplesmente sensacional!
Polêmico. O que acha? 6 3
muito bom me ajudou mesmo no trabalho d escola tava dificel… ai achei o site serto e terminei com o problema kkkkkk. Valeu!
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Muito bom o texto, William!
Uma sugestão para o seu próximo texto: vamos trocar o termo “Mobilidade Urbana” por “Mobilidade Humana”. Humana em todos os seus sentidos, não só o do ser físico, mas do ato humano, de respeito mútuo aos outros e a todas as formas de vida. Do ato de liberdade dos seres para ir e vir (direito constitucional) com segurança e saúde para todos. De viver os espaços públicos com os amigos e a família, saindo da “bolha” antissocial do automóvel. De sentir a brisa natural e não do ar-condicionado. De dar e receber um bom dia às pessoas nas calçadas. De passar embaixo das árvores e levantar os braços pra encostar nas suas folhas. Do ato de se sentir uma pessoa melhor para o mundo. Essas coisas simples se perderam com essa tal da modernidade, com essa pseudo-necessidade de autoafirmação junto à sociedade.
Para mim, andar de bike não é um protesto. É uma filosofia de vida. Uma vida mais humana. Precisamos de mais humanos!
Parabéns pelo site! Eu o recomendo a todos as pessoas que conheço, principalmente aos motorizados.
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Mais dois aspectos sócio-econômicos:
1- Com o alargamento das vias e construção de novas, além do espaço das garagens, o espaço para as casas fica comprometido. Lei de mercado: maior demanda, menor oferta, preço alto.
2- Endividamento e inadimplência. A grande massa motorizada geralmente não consegue pagar o automóvel a vista. Daí já se sabe: financiamento, prestações pesadas, comprometimento orçamentário e calote. Fora que sustentar um carro é muito caro. E isso causa um impacto tremendo na macro-economia. Vale lembrar, que boa parte do crescimento do PIB brasileiro deve-se ao crédito – o poder de compra do brasileiro tá longe de ser lastreado.
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Nossa, acho que esse texto explica muito bem nossa luta! Parabéns.
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