O que importa é o tráfego de automóveis fluir

DICIONÁRIO
Trechos extraídos do dicionário “Novo Aurélio Século XXI”:

tráfego
(…) 9. Bras. V. trânsito (6 e 7) [Cf. tráfego, do v. trafegar.]

trânsito
(…) 6. Movimento, circulação, afluência de pessoas ou de veículos. (…)

trafegar
(…) 5. Transitar; passar, andar. (…)

A CET de São Paulo continua a mesma. Para que a bicicleta seja definitivamente aceita como parte do trânsito nessa cidade, é preciso haver uma mudança de mentalidade dentro da companhia, que deve ser propagada de cima para baixo para os funcionários.

A sigla CET significa Companhia de Engenharia de Tráfego. O dicionário “Novo Aurélio Século XXI” remete, em um dos itens da descrição do verbete, à palavra trânsito, que em seu item 6 é definida como “movimento, circulação, afluência de pessoas ou de veículos”. De pessoas ou de veículos. E a bicicleta também é um veículo. O tráfego não é formado apenas de carros, é formado também de outros veículos: motos, ônibus, caminnhões, triciclos, bicicletas e até, por que não, patinetes. E também é feito de pessoas: pedestres, skatistas, patinadores. A rua é de todos.

Posto dessa forma, parece muito simples. Mas parece que a diretoria, presidência, ou sei lá quem é que estabelece essa política imbecil na CET de São Paulo não entende nem assim, explicado de uma forma que (quase) qualquer idiota entenderia.

Não é de hoje que a CET demonstra que trabalha em função do fluxo motorizado, mesmo que em detrimento da segurança das pessoas. E quando a gente pensa que está melhorando, esfrega os olhos e vê vários sinais de que continua a mesma coisa.

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Pare na calçada para não atrapalhar o tráfego

Carro e moto da Globo estacionados no meio da Praça Gal. Gentil Falcão, em cima da grama, na maior cara de pau, durante a filmagem do Desafio Intermodal. Foto: Willian Cruz/ Vá de Bike!
Carro e moto da Globo estacionados no meio da Praça Gal. Gentil Falcão, em cima da grama, na maior cara de pau, durante a filmagem do Desafio Intermodal.
Foto: Willian Cruz/Vá de Bike!

Quinta-feira, 17 de setembro, 2009. Carro da Rede Globo chega na Praça Gal. Gentil Falcão para cobrir o Desafio Intermodal e estaciona em cima da grama, no meio da praça. Segundo os funcionários da emissora, “a CET que mandou parar aqui”. Há também uma moto estacionada junto ao carro.

Provavelmente não foi naquele momento, já que não havia nenhum agente da CET no local, mas a pretensa imunidade jornalística às leis de trânsito e ao respeito ao próximo advém do mau exemplo das autoridades de trânsito, da impunidade e do incentivo da CET à sua prática: quando um carro quebra, a primeira providência dos agentes é empurrá-lo para cima da calçada.

O pensamento dos agentes da CET ao colocar o carro em cima da calçada – ou da praça – é de que na rua ele atrapalha o fluxo de automóveis. O pedestre que desvie pela rua, o importante é não diminuir a “fluidez” dos carros.

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Saiam da rua, os carros querem passar

A Av. Sumaré foi fechada para os carros nesse domingo, 20 de setembro, para ser utilizada como área de lazer. As faixas e a divulgação “informal” (não vi divulgação oficial) diziam que a liberação seria até as 14h. Cheguei lá às 13h, esperando aproveitar o finalzinho da festa, mas só consegui me decepcionar.

Às 13h30 a pista sentido bairro já estava totalmente liberada para o tráfego motorizado. Na pista contrária, uma pickup da CET passava com a sirene ligada, com o agente gritando irritado “ACABOU! ACABOU!” e fazendo sinal para sair da rua.

Parei no meio da rua olhando inconformado, nem tanto pelo fechamento mas para a maneira como a coisa acontecia. Estávamos sendo literalmente expulsos da rua, antes do horário, sem conversa e sem explicação. A “viatura” passou, mas parou a uns 20 metros de mim e o agente, com a cabeça para fora da janela olhando para trás, gritava olhando para mim, sem a menor paciência:

Desmonta aí filho, vamos embora pela calçada, empurrando. É mais seguro.
De um pai que estava de bicicleta com o filho na Av. Sumaré, às 13:35, assustado com o terrorismo psicológico do agente da CET.

– TO DIZENDO QUE ACABOU!
– Mas não era às duas? – ainda tentei argumentar.
– TO DIZENDO QUE ACABOU!
– Mas era até às duas, tá escrito ali na faixa!
– EU TO DIZENDO QUE ACABOU!!
– E se eu continuar aqui?
– Aí eu vou ter que chamar o policiamento pra você!

Eu abri os dois braços como quem diz “fazer o que então, né?” – e continuei no meio da rua. Nisso algumas outras pessoas foram até a janela da viatura, meio assustadas com a sirene e os gritos do agente, para entender o que estava acontecendo. Sei lá o que ele explicou, porque de longe eu não ouvi.

Cheguei perto da janela, pelo lado direito da viatura, e falei pra ele:  “vou continuar aqui, usando o bordo da via, porque é meu direito, artigo 58 do código de trânsito”. Ele, bem mais manso (será por que citei uma lei?), respondeu “ah tá, no bordo da pista pode…” e seguiu com o carro, ligando de novo a sirene.

Todos saíam da rua rapidamente e assustados, como se um maremoto estivesse chegando. Fomos para o bordo da pista e subimos a Av. Sumaré pedalando pela faixa da direita, eu e minha esposa. Iniciante no uso da bicicleta, ela ficou assustada, tanto com o comportamento do agente da CET como com a abertura da avenida que, da maneira que era anunciada, parecia iminente e perigosa. Dava a impressão de uma comporta que iria se abrir e todos que não subissem para a calçada sucumbiriam.

Tudo bem, entendo que o dia não estava bom e não tinha tanta gente assim usando a avenida para pedalar, então resolveram fechar antes do prometido. Ou que precisavam de uma hora para retirar os cavaletes de ambas as pistas e a promessa das 14 horas era para os carros, não para as pessoas. Tanto faz. Mas não é desse jeito que se lida com gente. Parecia que diziam “saiam daqui, os carros vão passar e vocês estão atrapalhando, se não saírem vou chamar a polícia”. Só faltou o marronzinho contar até três para eu sair da rua. Lamentável. Reflexo da política adotada pela Companhia, a de que os carros têm prioridade e direito exclusivo de uso das vias. O resto – sejam caminhões, ônibus fretados, bicicletas ou pedestres – é obstáculo.

Às 13:50 estávamos no topo da Av. Sumaré, onde ela passa a se chamar Paulo VI. Os carros já fluíam nos dois sentidos.

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Proteger a vida não é meu trabalho, se vira aí

No site do CicloBR, André Pasqualini faz outro relato lamentável do final de semana, dessa vez na Ciclofaixa de Lazer. Ou, pelo menos, onde ela deveria funcionar.

A princípio, todos acreditávamos que o não funcionamento da ciclofaixa nesse domingo seria em decorrência de uma corrida de rua, que ocuparia o mesmo espaço, impossibilitando seu uso. Não fazia muito sentido, mas tudo bem, terminando a corrida ela provavelmente seria liberada.

Ciclofaixa desativada: ciclistas desorientados. Foto: CicloBR
Ciclofaixa desativada: ciclistas ficaram desorientados nesse domingo.
Foto: CicloBR

Ah, quanta inocência… Aparentemente, a CET estava ocupada demais para se preocupar com Ciclofaixa e parece ter sido esse o motivo da não abertura. A rua estava desimpedida para os carros e uma faixa, virada pra o fluxo de carros na rua e não para quem saía do parque, avisava que a ciclofaixa não estava funcionando, dando a alguns motoristas argumento para ameaçar a vida dos ciclistas que insistissem em utilizá-la, geralmente sem saber que ela estava “fechada”.

Existe um tipo de motorista que coloca a vida de um ciclista em risco para provar seu ponto de vista: o de que ele não deveria estar ali. Através de finas, buzinadas, ameaças com o tamanho do carro sobre o frágil ser humano que se equilibra na bicicleta, eles tentam “educá-lo” segundo seus próprios princípios distorcidos, punindo-os com uma ameaça (e um risco) de morte por fugirem do que consideram correto. Uma tentativa de homicídio, mesmo que o motorista que faz isso não tenha consciência do perigo em que coloca a vida de alguém ao fazer isso.

O mais bizarro é que o ciclista tem direito de estar ali, tendo ciclofaixa ou não. O art. 58 do Código de Trânsito diz que o ciclista deve usar os bordos da pista. Veja bem: “os” bordos da pista, ou seja, ambos, tanto o lado direito como o esquerdo. Claro que evitamos usar o esquerdo, porque é onde os carros passam com mais velocidade (geralmente, acima do limite). Mas é ali que a ciclofaixa está pintada no chão.

Os motoristas que ameaçavam os ciclistas por vezes gritavam que a ciclofaixa estava desativada. Ou seja, “saia da rua, ela é minha, senão eu passo por cima”. Um flagrante desrespeito à vida, respaldado por uma faixa da CET que dava a entender que os ciclistas não deveriam estar ali naquele dia.

Uma sinalização indicando a presença de ciclistas legitima sua presença na rua. Afirma que o ciclista tem tanto direito de utilizar a pista quanto o motorista do automóvel. Por outro lado, uma faixa que diz com todas as letras que a ciclofaixa está desativada, diz claramente ao motorista que o ciclista está errado em trafegar ali, mesmo que a lei lhe garanta esse direito.

Ciclofaixa desativada: crianças a utilizaram mesmo assim. Foto: CicloBR
Alguns pais levaram seus filhos para pedalar na ciclofaixa. A maioria não sabia que ela estava desativada.
Foto: CicloBR

O pior de tudo foi a atitude dos agentes da CET que estavam no local. Mesmo VENDO motoristas em flagrante de direção perigosa, desrespeitando meia dúzia de leis de trânsito e ameaçando a vida das pessoas com o veículo de uma tonelada, preferiam multar carros estacionados e diziam não poder fazer nada.

Os carros estacionados atrapalhavam o fluxo dos outros carros. Era mais importante tirar aqueles dali, para outros poderem fluir com mais velocidade, do que proteger vidas que estavam em risco. A mim parece omissão e crime, gostaria de saber o que diria a lei.

O motorista que faz isso na cara da CET e não leva uma multa, uma reprimenda, uma voz de prisão de um policial militar, se sente em seu direito ao agir daquela forma. Para ele, aquele comportamento sociopata foi aceito pelas autoridades e, portanto legitimado. Na próxima oportunidade, fará igual e acreditará ter uma atitude correta ao fazê-lo, graças à anuência da Companhia de Engenharia de Tráfego da cidade de São Pauloe ao estímulo da sinalização inadequada.

Veja mais detalhes e fotos no relato no André Pasqualini.

8 comentários em “O que importa é o tráfego de automóveis fluir

  1. Juliano, eu acredito que é muito mais fácil um cego trombar com um orelhão do que com uma bicicleta, que é bem mais “tateável” com a bengala. Se estivessem mesmo preocupados nesse nível com deficientes visuais não estacionavam as viaturas nas calçadas. E se a cidade se preocupasse tanto assim com deficientes visuais, os sinais de pedestres teriam som além de imagem. Ele inventou uma desculpa qualquer na hora, só pra justificar. Na real, ele não gostou de ver a bicicleta ali e pronto.

    Já não é a primeira vez que ouço relato de alguém que prendeu a bicicleta perto de onde havia PMs e eles mandaram não estacionar ali. Acho que têm receio de alguém levar a bicicleta embora sem eles perceberem o furto e depois sobrar pra eles porque aconteceu debaixo de seus narizes. Melhor roubarem na esquina de baixo.

    E se a gente fosse estacionar só em bicicletário e paraciclo, era melhor deixar a bicicleta em casa e ir logo a pé.

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  2. “quando um carro quebra, a primeira providência dos agentes é empurrá-lo para cima da calçada”
    de certa maneira eu entendo por que coisas assim acontecem, é o medo de sofrer pressão, os homens da CET têm medo da pressão das buzinas dos motoristas caso autorizassem um pedestre atravessar a rua ou impedissem que um carro quebrado ficasse na calçada, além da pressão dos colegas de trabalho que por serem também condicionados achariam uma atitude dessas tola. Os motoristas dirigem da forma como vemos todos os dias pois têm medo da pressão que sofreriam dos seus superiores e/ou dos colegas caso ele fossem ao trabalho de bicicleta seriam chamados também de tolos. Resumindo, eu acho que é puro medo e falta de personalidade o que impede uma mudança de mentalidade.

    Não acredito que o cara da CET falou para você sair da rua, to inconformado, acho que ele nem sabe do CTB. Falando nisso eu tenho um relato: às vezes vou à R. Florêncio de Abreu e onde vou parar minha bike? Pois é, sempre parei em poste, mas agora que eu me apeguei a magrela eu procuro parar em lugares seguros, decidi prendê-la num poste no largo S. Bento ao lado do posto da PM local que não atrapalharia os pedestres e eu estaria seguro, chegando de volta para pegá-la o PM ignorante veio falando:
    “Rapaz você não pode prender sua bicicleta aí””Eu já ia chamar o GCM para levá-la para o pátio da Sé”,
    e eu:
    “por que?”
    ele:
    “ora você quer discutir?””já falei.. tudo bem pode ficar aí……(pegou o telefone para ligar pro GCM)”
    depois de falar a ele que não precisava falar alto, ele me explicou que lugar de bicicleta não é na calçada pois circulam deficientes visuais e que eu devo parar no bicicletário (que são fora de mão quase sempre), agradeci e fui embora, agora eu te pergunto Willian:
    o artigo 255 do CTB não impede apenas a condução de bikes nas calçadas, não vejo citado ali que parar nas calçadas seja proibido, você concorda?
    Não gostaria que um cego caísse por causa da minha bike, mas às vezes não vejo saída senão prendê-la num poste ou numa árvore.

    Abraço, escrevi quase um livro,

    Juliano

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  3. Abrir a ciclofaixa sem cones e fiscalização, vá lá, até funcionaria, mesmo com um ou outro motorista invadindo a pista, desde que ela continuasse sinalizada adequadamente. Mas dizer claramente – aos carros! – que ela está desativada, é dar aval para empurrarem o ciclista para fora da via.

    A sinalização diz ao motorista o que ele pode ou não fazer. Essa fez muitos entenderem que aquelas bicicletas não deveriam estar ali e, por isso, os ciclistas deveriam ser punidos com ameaças de morte.

    É o efeito colateral da criação de vias segregadas. Principalmente se elas funcionam apenas em determinados dias e horários e são “ligadas” e “desligadas” conforme a conveniência do poder público, sem muito aviso.

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  4. Mesmo com as previsões de que a ciclofaixa poderia trazer efeitos negativos para os ciclistas fora do horário de funcionamento, o saldo final parecia positivo. Foi muito triste ver o abuso motorizado ocorrendo de fato, como previsto. Uma violência desproporcional.

    Primeiro o descaso para informar a não-abertura da ciclofaixa, depois os motoristas matando a pau a esperança das pessoas de pedalarem tranquilas pelas ruas (levando embora aquele otimismo inicial que a ciclofaixa trouxe) e para fechar a CET ignorando sua função…

    Indignante.

    Pedalemos mais!

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