Leitor afirma que bicicletas não podem usar as ruas, para não atrapalhar os carros

Um debate complexo no Vá de Bike: o leitor Ricardo Dirani tem toda a certeza de que ciclistas não devem usar as vias e que elas são de uso exclusivo dos automóveis. Veja seus argumentos e a opinião do Vá de Bike.

Um debate complexo anda acontecendo nos comentários de um dos textos do Vá de Bike. Um leitor, Ricardo Dirani, tem toda a certeza de que ciclistas não devem usar as vias e que elas seriam de uso exclusivo dos carros.

Sua argumentação se baseia no artigo 58 do Código de Trânsito, que afirma que os ciclistas devem usar os “bordos da pista”. Para Dirani, isso corresponde ao meio-fio e as bicicletas devem circular sobre a sarjeta. “É por onde eu vejo todo mundo que é louco de colocar uma bicicleta no meio do trânsito em Sampa”, afirma o leitor, apesar de sua página no Facebook contar que ele reside em Campinas.

Baseado em sua interpretação subjetiva da lei, Ricardo Dirani dispara frases que demonstram intolerância e falta de respeito pela vida humana, como quando diz que as Bicicletadas são “crimes”, comparando uma interrupção temporária no trânsito de automóveis (por causa de bicicletas, não por causa de outros carros) a assassinatos e estupros.

De uma lei extensa e intrincada como é o Código de Trânsito, Ricardo – não o Neis, dessa vez o Dirani – utiliza apenas um pequeno trecho de um único artigo para embasar sua argumentação egoísta e preconceituosa, deixando de perceber que o todo do Código de Trânsito prima principalmente pelo respeito à vida humana, acima até do direito de circulação.

Embora o discurso do leitor me incomodasse muito, pelo preconceito e agressividade sutilmente embutidos e por estimular atitudes agressivas contra ciclistas, evitei ao máximo escrever uma resposta até agora. Tento não entrar em conflito com quem comenta no Vá de Bike, permitindo seu direito de se expressar por mais equivocado que o leitor esteja, mas não posso correr o risco de permitir que algum desavisado acredite nos absurdos escritos ali.

Portanto, respondo com minha opinião através deste post. O direito de expressão do leitor continua valendo, afinal os comentários são abertos a qualquer um.

Frases

Algumas das frases que me estimularam a escrever este post:

“Sim. É crime [circular a uma velocidade baixa]. Cheque o artigo 48 [na verdade, se referiu ao 58, que diz para utilizar os bordos da pista]. Vocês têm que circular por via própria, e na ausência desta, junto ao meio fio, para não impor sua velocidade ao resto do trânsito.”

“Ah, mas disso eu tenho certeza [que as Bicicletadas continuarão ocorrendo]. Como continuarão acontecendo assassinatos e estupros. Sempre haverão [SIC] pessoas que se consideram acima da lei.”

“Na ausência da ciclovia, você tem que trafegar colado ao meio fio. Você não fica com uma pista só para você. Entende isso?”

“Estaremos pensando em um regime em que ruas são feitas para carros, e calçadas para pedestres, e que ciclistas têm que se encaixar em algum lugar no meio, ao invés de achar que têm um direito que não têm de ocupar qualquer coisa da pista que vá alem de seus ‘bordos’ *quando* não há acostamento ou ciclovia.”

A opinião do Vá de Bike

Ruas para pessoas

Ruas não são feitas para carros. Ruas são feitas para pessoas. Aliás, as ruas sempre foram feitas para as pessoas, desde o início. Para que elas se deslocassem em uma taba, em uma vila, em uma cidade.

Com o tempo, essas pessoas passaram a se deslocar em cavalos, em carroças e depois em máquinas movidas a motor, mas as ruas continuaram sendo essencialmente para levar essas pessoas para onde precisam ir, não importando o veículo que utilizem.

Bordos da pista

Quanto a ciclistas “acharem que têm um direito que não têm” ao ocupar a faixa, vamos rever o que diz o Código de Trânsito:

Art. 58. Nas vias urbanas e nas rurais de pista dupla, a circulação de bicicletas deverá ocorrer, quando não houver ciclovia, ciclofaixa, ou acostamento, ou quando não for possível a utilização destes, nos bordos da pista de rolamento, no mesmo sentido de circulação regulamentado para a via, com preferência sobre os veículos automotores.

Bem, quando não há ciclovia, ciclofaixa ou acostamento – e dentro de uma cidade isso significa quase sempre – deve-se utilizar os bordos da pista. E é esse um dos pilares da argumentação. Pois vamos analisar esse aspecto.

Em primeiro lugar, o texto diz “os” bordos. Perceba que o artigo está no plural. Isso significa ambos, tanto no lado esquerdo quanto direito. Claro que não vamos utilizar a pista esquerda de uma avenida, sejamos razoáveis. Mas para sair em uma conversão permitida à esquerda, quando essa faixa serve apenas a quem vai virar em uma rua ou fazer um retorno, ou em ruas de tráfego menos intenso, onde na faixa direita circulam ônibus, é importante saber que esse uso é permitido por lei.

Em segundo, até onde vai o bordo? Vejamos a definição de bordo no Código de Trânsito Brasileiro:

BORDO DA PISTA – margem da pista, podendo ser demarcada por linhas longitudinais de bordo que delineiam a parte da via destinada à circulação de veículos.

Bordo é, portanto, a margem da pista. Mas até onde ele vai? A lei não diz. Até as “linhas longitudinais de bordo”? Essas linhas só existem quando há acostamento e, nesse caso, a bicicleta deve circular por ele (o que obviamente é mais seguro). Não havendo bordo demarcado, o bordo vai até onde meu entendimento o levar, já que a lei não o especifica. E meu entendimento o leva até onde for necessário para que minha segurança seja garantida. Entenda por que mais adiante.

Um exercício de compreensão

Pedalando muito próximo ao meio-fio, maus motoristas que desrespeitam leis forçam passagem pela mesma pista e colocam em risco o ciclista, sem se importar com sua vida.

Vamos imaginar por um instante, apenas por um breve instante, que a argumentação desse leitor estivesse correta, que houvesse uma demarcação de bordo nas vias e que o ciclista só devesse mesmo pedalar sobre a sarjeta, correndo o risco de bater o pedal no meio-fio, de entalar a roda em uma grelha ou de não conseguir desviar de um buraco, caindo em meio aos carros.

Como todos os outros artigos do Código de Trânsito continuam valendo, quando Ricardo Dirani passasse com seu carro ao lado de um ciclista ele teria que respeitar o artigo 201, que o obriga a passar a uma distância de um metro e meio da bicicleta que está ali espremida junto ao meio-fio.

Como as faixas de circulação não conseguem abrigar a largura de um automóvel, mais 1,5m de distância, mais a largura de uma bicicleta, Dirani teria de mudar de faixa para fazer a ultrapassagem dentro da lei e sem colocar em risco a vida do ciclista. Para ele, portanto, seria totalmente indiferente se o ciclista está se jogando na calçada ou pedalando bem no meio da faixa, uma vez que seria necessário mudar de faixa de qualquer forma.

Não entendo então o porquê de tanta celeuma, já que o Sr. Dirani se mostra bastante cioso com o cumprimento das leis e não deixaria de cumpri-las apenas para provar um ponto de vista, sobretudo se isso implica em colocar vidas em risco.

Tenho certeza também que o Sr. Dirani respeita o artigo 192, que diz para manter distância lateral segura e não colar na traseira dos demais veículos, incluindo-se aí as bicicletas. Também dá preferência aos ciclistas em cruzamentos, de acordo com o artigo 214, e diminui a velocidade a ultrapassar uma bicicleta, conforme o art. 220 item XIII. Sabe ainda que os veículos motorizados são sempre responsáveis pela segurança dos não motorizados, de acordo com o art. 29 §2º.

Por mais que um ciclista, um pedestre ou até outro sagrado motorista esteja infringindo uma lei de trânsito, essa infração não justifica uma reação violenta e que incorra em crime de tentativa de lesão corporal ou de homicídio como forma de punir ou de “educar” alguém que esteja agindo incorretamente na via. Pense nisso.

Acima de tudo, quero crer que o Sr. Dirani respeita a vida humana, como pessoa de bem que pretende ser. Aquele ciclista utilizando a rua poderia ser seu amigo, se ele se desse a chance. Pode ser um pai, uma mãe, um filho sendo esperado por pais preocupados, o grande amor da vida de alguém. Dê-lhe o direito de chegar inteiro em casa.

Ciclista, ocupe a faixa

Sim, ocupe a faixa. Além de ser seu direito, é muito mais seguro. Não se importe se alguém com pensamento equivocado vai buzinar atrás de você, gritar impropérios contra sua mãe, esmurrar o volante e babar no banco de couro.

É melhor um motorista te xingar e mudar de pista para ultrapassar do que passar com o retrovisor a 10 centímetros do seu guidão, colocando sua vida em risco. E, mesmo que ele o faça, ocupando a faixa você tem um espaço de fuga à sua direita. Estando colado ao meio-fio, você só pode torcer para que ele não encoste em você com uma tonelada de metal a 70km/h.

Veja aqui no Vá de Bike por que ocupar a faixa e como fazê-lo de forma segura. Valorize sua vida, não a opinião de quem não se importa com ela.

169 comentários em “Leitor afirma que bicicletas não podem usar as ruas, para não atrapalhar os carros

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    2. Em um primeiro momento, você deveria se informar que o IPVA também é destinado e usado em outros pontos da gestão pública como: saúde, educação etc. Em muitas localidades do país mesmo pessoas que não tem veículos motorizados exigem do municipio a adequação e asfaltamento de vias urbanas, por questões de: direito de ir e vir, circulação e acessibilidade, independente dos moradores da região terem carros ou não já que pagam impostos de suas casas e moradias!

      Comentário bem votado! Thumb up 4 Thumb down 0

  2. Tenho carro, poderia ir trabalhar todo dia de carro, mas acho muito mais gostoso, prazeroso e divertido ir de Bike de vez em quando, só não vou todos os dias por causa das subidas que eu tenho de pegar na volta que são um porre, desgasta mesmo!Mas sempre alterno, tem dia que vou de carro, tem dia que vou de lotação já que vai vazia mesmo e eu sempre vou sentado, e alguns dias principalmente as Sextas vou de Bike! Até hoje, nunca tive o menor problema, com nenhum motorista na rua, sempre vou no cantinho na minha, pedalando de boa, quando é uma rua muito perigosa e não tenho outro trajeto alternativo subo na calçada mesmo, mas claro sempre respeitando o pedestre, e assim vou feliz para o trampo e feliz de volta para casa! E feliz pedalando por ai nos finais de semana! Agora ficar seguindo a lei a risca é complicado, pois nem sempre dependendo da situação dá, nem para motorista e nem para ciclista, mas se todos tiverem EDUCAÇÃO e BOM SENSO, dá para conviver muito bem, quando saio de carro eu sei muito bem o que posso e o que não posso fazer, e quando saio de bike eu sei bem também o que posso e o que não posso fazer! É simples assim !

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  3. Na verdade o que atrapalha o motorista de veículo automotor é o seu próprio pensamento. O mesmo motorista de caminhão que presta serviços para a prefeitura e passa perto de uma escola, para sobre a faixa de pedestres e buzina perto de uma estudante, assustando-a e colocando em risco os demais ali presentes.

    Questionei-o a respeito e o mesmo se deu ao luxo de dizer “E daí?”. Acredito que seja a mesma pessoa que reclama dos altos impostos, mais um prefeito sendo cassado por improbidade administrativa e mais um cachoeira que comete crimes nacionais.

    Tratando-se de leis, não exite essa de lei-mais-que-lei. Desrespeitar o 201 da CTB é uma infração tanto como qualquer outra, seja quebra de decoro, homofobia, improbidade administrativa, enriquecimento ilícito ou quaisquer outra.

    Pra finalizar a minha colocação, cabe lembrar que o direito de IR e VIR é garantido pela constituição, ou seja, minha JUJU (bike) é reconhecida pela CTB e devo trafegar nas ruas como qualquer veículo.

    Não quer respeitar os ciclistas? Dirija-se ao Ciretran e devolva a sua CNH cheia de multas ou ande de helicóptero por um preço bem salgado. Largue dessa hipocrisia de reclamar dos “podrititos” (políticos podres) porque a sua infração é a mesma que a deles, perante a lei.

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