Da esquerda para a direita: Cauê Macris, Yuri Giusepe Castiglione, Maurício Santos, Maria Lúcia Amary, Felipe Doutel, José Augusto Rodrigues da Silva, Daniel Annemberg. Foto: ALESP

Como foi a Audiência Pública sobre crimes de trânsito

No dia 8 de dezembro de 2011, ocorreu na Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP) uma audiência pública para discutir crimes de trânsito e impunidade. O Vá de Bike participou ativamente da audiência e relata aqui como foi.

Da esquerda para a direita: Cauê Macris, Yuri Giusepe Castiglione, Maurício Santos, Maria Lúcia Amary, Filipe Doutel, José Augusto Rodrigues da Silva, Daniel Annemberg. Alguns dos participantes não couberam na mesa. Foto: ALESP

No dia 8 de dezembro de 2011, ocorreu na Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP) uma audiência pública para discutir crimes de trânsito e impunidade, com destaque para os realizados sob efeito de álcool. O evento foi coordenado pela Deputada Estadual Maria Lúcia Amary.

Muitos ciclistas pretendiam assistir à audiência, mas a forte chuva que caiu na cidade no final da tarde fez com que poucos comparecessem. Apesar da Lei Municipal 14.266 determinar, em seu artigo 8º, que edifícios públicos devam ter bicicletário, a ALESP só o disponibiliza para funcionários. Sabendo disso, o Vá de Bike entrou em contato antecipadamente com o gabinete da deputada, que conseguiu a liberação para visitantes nesse dia.

O Vá de Bike cobriu o evento ao vivo via Twitter e Facebook, mas fazemos aqui um relato mais detalhado.

Participantes

Além da deputada Maria Lúcia Amary, participaram da audiência os deputados Cauê Macris e Célia Leão, Maurício Santos, da OAB-SP, Dr. Fabiano de Paula, da Secretaria da Justiça, Dr. Yuri Giusepe Castiglione, promotor de Justiça, Dr. Daniel Annemberg, do Detran, o médico psiquiatra Filipe Doutel, o presidente da Associação Brasileira de Bebidas, José Augusto Rodrigues da Silva, o Coordenador de Políticas Públicas da Secretaria de Emprego e Relações do Trabalho do Estado de SP, Dr. Ari Friedenbach,

Havia ao menos dois ciclistas à mesa, dentre os citados acima: José Augusto Rodrigues da Silva, que faz uso esportivo da bicicleta, e o Dr. Filipe Doutel, que a utiliza em seus deslocamentos. Doutel, vale ressaltar, foi de bicicleta ao evento.

Além dos membros da mesa, houve participação de representantes dos movimentos Viva Vitão (Pedro Serrano), Não Foi Acidente (Ricardo Galvão) e do Dr. André Garcia, advogado especialista em trânsito. Willian Cruz, do Vá de Bike, inscreveu-se no início da audiência e também teve direito à palavra, com um breve discurso (descrito mais adiante). Um representante da Ciclocidade, Carlos Aranha, também se inscreveu, mas infelizmente não conseguiu ter a palavra devido ao horário avançado. A audiência começou com bastante atraso, pois muita gente demorou a chegar por causa da chuva e a sala precisou ser liberada antes que mais cidadãos pudessem participar.

Vídeo

A audiência começou com a exibição de um trecho do vídeo abaixo, que obviamente chocou a audiência.

Há um debate sobre esse vídeo na internet. Algumas pessoas acreditam que o rapaz fez uma crítica intencional, bastante inteligente e corajosa, com declarações polêmicas justamente para causar desconforto e revolta com a situação atual, estimulando a reflexão e a discussão do assunto; outros têm a certeza de que ele realmente pensa dessa maneira. De qualquer forma, o vídeo expõe a realidade sobre crimes de trânsito e o desrespeito à vida nas ruas. E isso precisamos mudar.

Participações

Deputada Estadual Maria Lucia Amary. Foto: ALESP

A Deputada Estadual Maria Lúcia Amary abriu a audiência comentando o vídeo apresentado logo antes e falando sobre a sensação de impunidade que grande parte da população sente quando bebe antes de dirigir. Declarou seu desejo de mudar essa situação e falou sobre a necessidade de punição a quem comete crimes ao volante. “A mais eficaz campanha de conscientização é a certeza da punição”, afirmou. A necessidade de acabar com a impunidade, aliás, foi unanimidade entre os presentes. Antes de passar a palavra aos colegas de mesa, Amary contou que protocolou na Assembleia Legislativa a criação de uma frente parlamentar para tratar do tema.

O Deputado Estadual Cauê Macris falou principalmente sobre consumo de álcool e direção. Afirmou que o álcool hoje é mais do que um problema social, porque a maioria dos crimes cometidos no trânsito são por pessoas que o ingeriram antes de dirigir. Comentou ainda que a legislação é muito branda e que é necessária uma ação efetiva de combate a esse problema, que atinge não apenas São Paulo mas todo o país.

De sua cadeira de rodas, a Deputada Estadual Célia Leão disse que “uma porcentagem bastante grande e importante dos deficientes são resultado de acidentes de trânsito”. Cadeirante há 37 anos, Célia está dentro dessa porcentagem e contou um pouco de sua história. “Que essas impunidades alertem a sociedade”, disse a deputada. “A sociedade precisa crescer. Eu quero que a sociedade perca o sono”. A deputada reforçou a questão da frente parlamentar de combate a motoristas criminosos.

Comentando sobre impunidade, o representante da Secretaria de Justiça, Dr. Fabiano M. de Paula, afirmou que ‎”o que resolve não é o tamanho da pena, mas a certeza da punição”. Alertou que é preciso pensar na questão da educação dos novos motoristas e que “é importante pensar no contingente de jovens que vão começar a dirigir”.

O Dr. Maurício Santos, representando a OAB-SP, declarou-se favorável a proibir a venda de bebidas em postos de gasolina, para coibir o “esquenta” antes da balada. Criticou a velha desculpa do “bombom de licor”, que muitos afirmam ser suficiente para ser pego no teste do bafômetro, dizendo que “um bombom de licor não deixa a pessoa embriagada, mas uma caixa de bombons de licor pode levar à embriaguez”. Comentou que os motoristas têm mais medo do “marronzinho” (agente de trânsito) do que do bafômetro, porque com o marronzinho há a certeza da punição. ” A Lei Seca não existe. Ou queremos ter uma Lei Seca, ou não queremos”.

Dr. Yuri Giuseppe Castiglione, promotor de justiça, falou sobre a reincidência de crimes por embriaguez ao volante, principalmente no interior, devido à impunidade. “O que adianta conseguir a condenação se a pena não é cumprida como deveria?”, questionou o promotor. Sugeriu alternativas ao bafômetro, que pode ser evitado pelo infrator, a coloca‎ção de informações nos pontos de venda de bebida sobre os riscos de dirigir depois de beber e a possibilidade do cidadão denunciar quem bebe e sai dirigindo para que seja feito o flagrante.

Filipe Doutel, médico psiquiatra e ciclista urbano. Foto: ALESP

Dr. Felipe Doutel, psiquiatra, contou que usa a bicicleta como meio de transporte e falou sobre os males do álcool. “Todas as drogas somadas não produz o efeito e não causam tudo o que o álcool causa”, declarou o médico, alertando que 15% dos brasileiros são dependentes alcoólicos. ‎Contou que “o álcool ‘desprograma’ a rotinização do ato de dirigir”, sem que a pessoa se dê conta. Acreditando que ainda está em condições para dirigir, a pessoa coloca a si e aos outros em risco.

O representante da Associação Brasileira de Bebidas (ABRABE), José Augusto Rodrigues da Silva, contou que o slogan “se beber, não dirija” foi criado pela associação e pela CET em 1996. “Não queremos que quem vai dirigir beba um ou dois copos de chopp permitidos pela lei. Nossa tolerância para quem vai dirigir é zero”. Dentro desse posicionamento, citou o site criado pela ABRABE para discutir e evitar abusos de álcool.

Em um discurso que me surpreendeu por tocar direto na ferida, Dr. Daniel Annenberg, Coordenador do Detran, falou sobre a necessidade de mudança nos exames e sobre pessoas que “compram” a habilitação.  “É preciso ter uma fiscalização mais abrangente: nas rodovias, estradas, motoristas, veículos, autoescolas e mudar os exames para tirar a CNH”, afirmou Annenberg. Disse ainda que a compra da habilitação se tornou uma questão cultural, que precisa ser mudada.

Dr. Ari Friedenbach, Coordenador de Políticas Públicas da Secretaria de Emprego e Relações do Trabalho, discordou da proposta de proibição da venda de bebidas alcoólicas nos postos de gasolina. “As pessoas vão comprar em outros lugares, no supermercado por exemplo, então não adianta proibir em um lugar e deixar no outro”.

O Delegado Polícia Civil do 15° DP (Itaim Bibi), Dr. Paul Henry, destacou que “os policiais e delegados precisam ter respaldo para realizar o exame clínico nas blitzes”.

Ricardo Galvão, do Movimento Não foi Acidente, contou que o movimento nasceu da morte de duas pessoas em um acidente causado por um motorista embriagado e destacou que essa questão é o ponto central de sua luta. “Queremos que cada indivíduo tenha em sua consciência que não pode beber e dirigir”.

Representante do Movimento Viva Vitão, Pedro Serrano, reforçou a questão da necessidade de punição. “Há pessoas que só pela punição vão aprender”. Disse que punições administrativas, como suspensão do direito de dirigir, devem ser rápidas. “As pessoas que cometem acidentes e não sofrem sanções administrativas do Detran, demoram a perder a CNH e continuam andando por aí cometendo as mesmas infrações”. E alertou que todos temos nosso papel na conscientização: “a sociedade colocou sua visão negativa para quem fuma em lugares fechados, agora devem se conscientizar e ver seu amigo que bebe e dirige de forma negativa também”.

Pedro comentou ainda que o problema não se limita a quem bebe antes de dirigir: “Pessoas sóbrias também cometem acidentes. Uma pessoa que anda muito acima da velocidade permitidade assume o risco de matar”. E é exatamente isso o que os ciclistas querem demonstrar quando dizem “não foi acidente”.

Dr. André Garcia, advogado especialista em trânsito, criticou o bafômetro, chamando-o de farsa, pois a pessoa pode se recusar a fazer o teste. Mostrou-se indignado também com a questão do indivíduo não ser obrigado a produzir prova contra si mesmo.

Vá de Bike

Iniciei com uma rápida apresentação, explicando o que é o Vá de Bike. Em seguida reforcei que o problema não é só o álcool, contando para exemplificar que a imagem que estava sendo utilizada ali havia sido criada por um ciclista, logo após o atropelamento de centenas de ciclistas por Ricardo Neis, em Porto Alegre, em fevereiro de 2011. Neis causou ferimentos em 17 pessoas e indignou milhares em todo o mundo sem estar bêbado. Márcia Prado e Antônio Bertolucci, entre tantos outros que permanecem anônimos, também foram mortos por motoristas sóbrios.

Como já havia dito Pedro Serrano, motoristas sóbrios também causam mortes. E, se assumem o risco de ferir alguém deliberadamente, seja com o excesso de velocidade ou a imprudência, o acidente deixa de ser acidente. Para ilustrar, usei as frases que o diretor geral da Ciclocidade, Thiago Benicchio, havia me enviado pouco antes pelo twitter: “Álcool é só metade da arma. Não podemos admitir propagandas que mostrem o automóvel como símbolo de velocidade e poder”.

Código de Trânsito Brasileiro, Art. 201: Deixar de guardar a distância lateral de um metro e cinqüenta centímetros ao passar ou ultrapassar bicicleta: Infração - média; Penalidade - multa.

1,5m

Expliquei a importância do metro e meio ao ultrapassar ciclista, definido pelo artigo 201 do Código de Trânsito Brasileiro, e como o desrespeito a essa regra simples, que implica apenas em mudar de faixa para fazer a ultrapassagem, pode colocar em risco a vida do ciclista sem o motorista se dar conta. “Um leve esbarrão do retrovisor faz com que o guidão vire bruscamente para a direita, derrubando o ciclista para debaixo das rodas do carro”. Contei que os agentes da CET, mesmo que queiram, não podem aplicar multa por desrespeito a essa distância. “A quem cabe mudar isso? CET? DETRAN?”

Falei sobre as alegações estapafúrdias dadas por autoridades de trânsito para não fiscalizar essa regra, como a afirmação de que é impossível medir a distância. “Quem diz não ser possível diferenciar 1,5m de 15cm ou é muito burro ou muito cara de pau”. Dei como exemplo a caneta que eu tinha em mãos: “todos aqui sabem que essa caneta deve ter 15 ou 20cm. Ela não tem 1,5m. Não queremos que se puna quem passa a 1,48m do ciclista, mas é preciso punir quem passa a 20cm do guidão.”

“Isso é urgente, não dá mais para esperar. Vidas dependem disso. Márcia Prado morreu assim, Antonio Bertolucci também”, concluí.

Suspensão do direito de dirigir

Quando um motorista mata alguém em um acidente de trânsito, seu direito de dirigir deveria ser suspenso na mesma hora. “O motorista que matou o Antônio Bertolucci saiu de lá dirigindo o ônibus. O que matou Márcia, também. Num momento desses, a pessoa está em choque, não tem estabilidade emocional para continuar dirigindo. Corre-se até o risco dela matar mais alguém pelo caminho”.

Quem comete um crime de trânsito não pode continuar dirigindo. O carro em suas mãos, intencionalmente ou não, torna-se uma arma. Essa pessoa passa a representar um perigo para a sociedade ao dirigir.

Exame para habilitação

Falei sobre a necessidade de mudar o exame para obter a habilitação. O exame se atém, por exemplo, a questões sobre quantos pontos na carteira advém de uma multa por furar o sinal vermelho. Tanto faz quantos pontos, o que eu preciso saber é que não posso passar o sinal vermelho e as consequências que isso pode ter. Com isso, a autoescola ensina a passar no exame, não a dirigir. As autoescolas deveriam ensinar a conviver nas ruas, a dividir o espaço e a respeitar a vida.

“Todo mundo sabe que tem como pagar para não ter que se preocupar com o exame escrito. Todo mundo sabe que tem como pagar para não se preocupar com o exame prático. Todo mundo sabe que se você não paga, maior a chance do examinador te reprovar por algum detalhe mínimo ou com alguma pegadinha”.

As próprias autoescolas oferecem a opção de pagar para passar no exame, servindo como facilitadores. Com isso, o Detran tem dado permissão de dirigir a pessoas que não deveriam estar nas ruas. E essas pessoas colocam em risco a mim, a vocês, a nossas famílias.

Twitters da Lei Seca

Declarei minha opinião de que os perfis de Twitter que divulgam blitzes da Lei Seca deveriam ser bloqueados. Mais do que um desserviço à população, esses perfis protegem potenciais criminosos, motoristas alcoolizados que podem matar alguém pelo caminho porque conseguiram escapar da blitz. Esses perfis ainda incitam indiretamente o uso de álcool a dirigir, pois o motorista que os segue confia que conseguirá evitar as blitz e não se constrange em pegar o carro ao sair embriagado da balada.

Próximos passos

O gabinete da Deputada Maria Lúcia informou ao Vá de Bike o que acontecerá agora, depois da audiência.

frente parlamentar é uma organização jurídica, que pode atuar em todos os setores como instrumento de proposição e cobrança de ações e mudanças na lei. Essa frente já esta formada e criada oficialmente na ALESP. As ideias levantadas na audiência pública estão sendo estudadas e serão feitas reuniões no decorrer do ano de 2012 para pressionar órgãos públicos e empresas.

Os membros da frente parlamentar definirão ações possíveis, definindo pedidos concretos e ações factíveis que possam ser propostas e, posteriormente cobradas. Como exemplos, pode-se negociar com STJ e STF mudanças no entendimento da lei e propor ao congresso um projeto de lei “álcool zero”, baixando a tolerância do exame de dosagem alcoólica.

O gabinete da deputada se colocou à disposição dos cidadãos que quiserem obter mais informações sobre a audiência, sobre o andamento dos trabalhos ou sobre o posicionamento da frente, através do e-mail mlamary@al.sp.gov.br e dos telefones 11 3886-6840 e 3886-6855.

3 comentários em “Como foi a Audiência Pública sobre crimes de trânsito

  1. Olá, não vou lembrar exatamente que ano foi, deve ter sido por volta de 2004.
    Meu irmão ultrapassou um ciclista a centímetros do mesmo; um policial que presenciou o fato o parou na hora e o multou.
    Como meu irmão estava com a habilitação vencida (o que rendeu outra multa), eu voltei dirigindo o carro, para o mesmo não ser recolhido.
    Parabenizei o policial, pois outros não teriam parado meu irmão.

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  2. Legislar sobre trânsito é competência federal da União pela Constituição de 88.
    A redução de velocidades urbanas é algo de competência do município e pode ser adotada pelo órgão executivo de trânsito. Um respaldo político da ALESC pode ser muito importante, mas não é suficiente, pois não tem poderes para regulamentar esse assunto, a despeito de todo o mérito da iniciativa.
    No caso dos centros de formação de condutores, talvez se possa articular no estado para levar o assunto à respectiva câmara temática do Contran, com o objetivo de adequar a formação dos formadores (a maioria ignorante das questões atinentes à proteção dos atores mais vulneráveis do trânsito).
    No campo legislativo, uma mudança, no plano federal, que se poderia tentar ir encaminhando, seria a de considerar como dolosos todo homicídio ou lesão causada por veículo motorizado a atores mais vulneráveis nas áreas proibidas àqueles, tais como calçadas, passeios, acostamentos, marcas de canalização, ciclovias, ciclofaixas. Nessas zonas não pode haver discussão, são áreas permitidas apenas aos vulneráveis. Não há razão para considerar diferente. Afinal, é princípio básico do trânsito que o condutor tenha o domínio do veículo conduzido, a todo momento. Pelo menos este enquadramento independeria de alcoolemia ou de medição de velocidade. A prova necessária seria a demonstração do local do sinistro.
    Nas faixas de travessia seria necessário refletir mais sobre uma solução.
    Quem sabe se pode encaminhar algo no campo legislativo para que o CTB exija infraestrutura adequada em todas as vias (acostamento nas rodovias, p.ex.), e não apenas os passeios nas obras de arte de engenharia (art. 68, § 5º). Essa infra precisaria incorporar no código condições de acessibilidade (pelo menos os cadeirantes).

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