Código de Trânsito define acostamento como o local destinado à parada de veículos em emergência e à "circulação de pedestres e bicicletas". Foto: Willian Cruz

Com alegações confusas, Ecovias proíbe na justiça descida a Santos de bicicleta

Ecovias consegue proibir na justiça o uso de qualquer trecho da Rodovia dos Imigrantes por ciclistas. Decisão ainda não é definitiva.

O cenário da Estrada de Manutenção sempre impressiona, mesmo a quem já fez a Rota diversas vezes.
Rota cicloturística proibida para ciclistas: só no Brasil. Foto: Willian Cruz

Em uma decisão que causou indignação entre os cidadãos que utilizam a bicicleta, a justiça de Cubatão/SP proibiu a utilização de qualquer trecho da rodovia dos Imigrantes por ciclistas. Entre as alegações da concessionária está a de que, em 2009, estes trouxeram grande insegurança para os motoristas (?!) ao realizar a descida coletiva.

Um trecho curto da rodovia é parte da Rota Cicloturística Márcia Prado, utilizado para se chegar à Estrada de Manutenção, justamente um caminho alternativo para que a descida não precise ser realizada pela Imigrantes, desviando assim dos túneis e de todo o trecho de serra, saindo diretamente em Cubatão.  Uma descida coletiva havia sido marcada para esse domingo, dia 8 de dezembro, por um grupo independente, depois que o Instituto CicloBR anunciou que não realizaria a descida oficial este ano.

A proibição atende a um pedido da concessionária Ecovias, do grupo Ecorodovias, que apresenta longo histórico de proibições ao uso da bicicleta na região da Serra do Mar, com argumentos incoerentes e que contrariam a legislação vigente. Apesar disso, a concessionária mantém uma página em seu site onde tenta convencer sobre sua preocupação com a sustentabilidade.

Justificativa

Segue a conclusão do juiz Sérgio Ludovico Martins, da 4ª Vara da Comarca de Cubatão (para ver o original, clique em “decisão proferida”, nesta página):

Rememorando que no ínterim de um estado democrático de direito se mostra incabível ventilar-se da existência de direitos absolutos, urge que seja mitigada a prerrogativa dos usuários de livre circulação e manifestação em detrimento da própria segurança e da segurança de terceiros. Neste diapasão, a memória de Márcia Prado clama que eventuais ulteriores atos de manifestação não sirvam de fomento a eventos infortunísticos similares ao que lamentavelmente ceifara sua vida, daí a necessidade da prévia autorização de mister, sem prejuízo de diligenciar-se o declinado serviço de apoio.

Em outras palavras, o juiz declara, com base nas informações oferecidas pela concessionária, que o direito de manifestação e de livre circulação dos ciclistas na rodovia colocaria em risco os próprios ciclistas e terceiros (os motoristas). O texto ainda dá a entender que os ciclistas estariam criando condições para que aconteçam acidentes semelhantes ao que vitimou Márcia Prado na Av. Paulista. Isso chega a soar ofensivo a quem acompanhou de perto a ocasião e a repercussão de sua morte. Ora, o que vitimou Márcia foi a irresponsabilidade de um motorista, que a atropelou enquanto ela fazia uso legítimo de uma via urbana na cidade de São Paulo. O motorista que a matou foi processado e condenado, ainda que tenha recebido uma pena bastante leve pelo mal que causou (cumprimento de serviço social).

Não é portanto adequado afirmar que, ao tentar usufruir de seu direito de circulação pelo acostamento da rodovia, os ciclistas estariam criando condições para suas próprias mortes – sobretudo dando a entender que foi isso o que ocorreu com Márcia. Essa é uma comparação que não cabe aqui. Se há risco de morte de ciclistas, ou se sua mera presença oferece risco até aos motoristas, isso não decorre de serem suicidas ou irresponsáveis, mas sim do fato – admitido pela concessionária – de que a rodovia não é segura para todos os seus usuários.

Descumprimento de Lei embasa proibição

Rota Cicloturística Márcia Prado - driblando proibições
Pela Lei, rodovia deveria ter condições seguras para a circulação de bicicletas. Ou ser oferecida uma rota alternativa. Foto: Willian Cruz

Essa falta de segurança da rodovia para receber os cidadãos em bicicleta, que a Ecovias admite, atesta seu descaso em cumprir a legislação, além da omissão da ARTESP quanto a essa grave falha. O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) determina, em seu artigo 21, que os “órgãos e entidades executivos rodoviários” devem “planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e segurança de ciclistas“.

O mesmo Código de Trânsito também prevê, logo em seu primeiro artigo, no parágrafo 2º, que “o trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito”. Ou seja, transitar de forma segura é um direito de todos (vejam bem, de todos) e prover essas condições de trânsito é um dever dos órgãos e entidades. Um dever que, assumidamente, não vem sendo cumprido.

Segundo a Wikipedia, “a empresa privada Ecovias recebeu a concessão por um período de 20 anos para a operação e manutenção de todo o Sistema Anchieta-Imigrantes em 27 de maio de 1998” – ou seja, já com o novo Código de Trânsito, de 1997, em vigor. O texto informa ainda que a pista descendente da Rodovia dos Imigrantes “foi inaugurada em 17 de dezembro de 2002” – ou seja, já deveria ter sido construída com condições seguras para a circulação de bicicletas, o que constitui um flagrante descumprimento do que determina a Lei de trânsito.

E agora, por mais inacreditável que possa parecer, esse descumprimento da Lei constitui o argumento principal da concessionária para proibir a circulação de bicicletas.

Argumentação confusa da concessionária

O texto da decisão sugere que as informações fornecidas ao juiz não correspondem à realidade em diversos aspectos, exagerando nas tintas a situação real e podendo levá-lo a equívocos de avaliação. Por exemplo, em determinado momento é citado o artigo 59 do CTB, que diz que a circulação de bicicletas “nos passeios” só é permitida quando autorizada e sinalizada pelo órgão ou entidade responsável pela via. Mas a definição de “passeios” do Código é bem diferente do que ele mesmo considera como acostamento:

PASSEIO – parte da calçada ou da pista de rolamento, neste último caso, separada por pintura ou elemento físico separador, livre de interferências, destinada à circulação exclusiva de pedestres e, excepcionalmente, de ciclistas.

ACOSTAMENTO – parte da via diferenciada da pista de rolamento destinada à parada ou estacionamento de veículos, em caso de emergência, e à circulação de pedestres e bicicletas, quando não houver local apropriado para esse fim.

CTB define acostamento como o local destinado à parada de veículos em emergência e à "circulação de pedestres e bicicletas". Foto: Willian Cruz
CTB define acostamento como o local destinado à parada de veículos em emergência e à “circulação de pedestres e bicicletas”. Foto: Willian Cruz

O que os ciclistas desejam e precisam é nada mais do que utilizar o acostamento, que como se pode perceber pela definição acima (extraída do CTB), é o local da rodovia adequado à circulação de bicicletas, sem necessidade alguma de autorização ou sinalização especiais.

Outro ponto que se mostra bastante equivocado é a justificativa de que há “vários trechos desprovidos de acostamento, destacando-se os inúmeros túneis”. Mas a Rota Cicloturística Márcia Prado não passa por trechos sem acostamento e, sobretudo, não passa pelos túneis!

O objetivo da Rota é justamente evitar esses trechos, como se pode notar pelo mapa do trajeto. A utilização da Estrada de Manutenção se dá justamente para evitar os trechos de túneis. E a Ecovias sabe disso, pois em todos os anos em que a descida oficial foi realizada (e acompanhada de perto pela Ecovias), os ciclistas entraram na Estrada de Manutenção no máximo neste ponto, logo após o km 46, cerca de um quilômetro antes do primeiro túnel. É no mínimo curioso, portanto, que a concessionária tenha fornecido essa argumentação para justificar o impedimento. É uma argumentação que induz a conclusões equivocadas sobre a natureza da utilização que se pretende fazer da rodovia.

Polícia impedirá a descida e qualquer manifestação

Por determinação do juiz,  a polícia deve impedir a descida e, ainda, comprovar sua tentativa para que os organizadores recebam uma multa de 300 mil reais por dia de descumprimento:

Ex positis, determino:

– a intimação dos requeridos para que se abstenham de realizar a “Rota Cicloturistica Márcia Prado” no trajeto noticiado nas rodovias que integram o Sistema Anchieta-Imigrantes, sua faixa de rolamento, acessos, acostamentos, pontes, viadutos e quaisquer edificações, inclusive Praças de Pedágio, sob pena da aplicação de multa pecuniária no importe de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) por dia de descumprimento;

– a requisição de apoio policial para imediato cumprimento do mandado proibitório, no desiderato de evitar qualquer manifestação imediata por parte dos ciclistas requeridos;

– a expedição de ofício à Polícia Militar Rodoviária, com cópias do atual decisório, para que mantenham vigilância ao longo da Rodovia dos Imigrantes, a fim de evitar a ocorrência de acidentes e rotas ciclísticas, além de poderem realizar a comprovação necessária das ocorrências para aplicação de eventual pena cominatória.

Em 2008, um grande efetivo policial impediu que centenas de ciclistas descessem pela primeira vez, de forma coletiva, o que se tornaria no ano seguinte a Rota Márcia Prado. Foto: Leonardo Cuevas
Em 2008, um grande efetivo policial impediu que centenas de ciclistas descessem pela primeira vez, de forma coletiva, o que se tornaria no ano seguinte a Rota Márcia Prado. Foto: Leonardo Cuevas

Decisão ainda não é definitiva

A determinação do juiz Sérgio Ludovico Martins trata-se de decisão liminar. Ele concluiu, frente à argumentação e documentos fornecidos pela concessionária, que o tráfego de ciclistas colocaria eles próprios e também os motoristas em risco, decidindo portanto impedir esse deslocamento com o objetivo de proteger vidas. Com as informações que lhe foram apresentadas, julgou que seria o mais prudente a ser feito. Ainda que sejam questionáveis, eram as informações que ele possuía sobre o caso e teve que decidir sobre elas.

Mas não basta apenas proibir. É preciso buscar alternativas que possibilitem que pessoas a pé ou de bicicleta possam chegar ao litoral. Se esse caminho é perigoso ao ciclista, que sejam criadas condições de segurança, ou que seja oferecido um caminho diferente e que preserve sua integridade.

E, apesar da Ecovias não reconhecer ou admitir, é esse um dos principais objetivos da Rota Cicloturística Márcia Prado: possibilitar uma alternativa segura aos ciclistas, já que a rodovia principal não oferece segurança. É por isso que a Estrada de Manutenção é utilizada na Rota. É por isso que os ciclistas a acessam antes mesmo do primeiro túnel. É por isso que, no trajeto oficial, a rodovia dos Imigrantes é utilizada pelo menor percurso possível. Os ciclistas não desejam se arriscar nos túneis junto aos caminhões. Não querem que se bloqueie o tráfego dos demais veículos para que suas bicicletas passem. Querem apenas uma alternativa segura e viável para chegar ao litoral.

Ainda é viável reverter essa decisão, possivelmente com uma ação coletiva. Se essa decisão vier se tornar permanente, estará restringindo um direito de cidadania, o de se deslocar de uma cidade a outra, sem que seja oferecida alternativa alguma. E o Ministério Público precisa estar atento a essa restrição de direitos.

33 comentários em “Com alegações confusas, Ecovias proíbe na justiça descida a Santos de bicicleta

  1. Quanto custou o apoio do juiz?
    Se mandar descer da bike alegando proibição é só lembrar o indivíduo dos artigos do CTB:
    1º. § 1º Considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga.
    10º. Art. 192. Deixar de guardar distância de segurança lateral e frontal entre o seu veículo e os demais, bem como em relação ao bordo da pista, considerando-se, no momento, a velocidade, as condições climáticas do local da circulação e do veículo:
    18º. Art. 58. Nas vias urbanas e nas rurais de pista dupla (conhecidas como Rodovias), a circulação de bicicletas deverá ocorrer, QUANDO NÃO HOUVER CICLOVIA, CICLOFAIXA, OU ACOSTAMENTO, OU QUANDO NÃO FOR POSSÍVEL A UTILIZAÇÃO DESTES (detritos que prejudiquem o tráfego, buracos, animais, veículos obstruindo a passagem, acidentes, etc.), nos bordos da pista de rolamento, no mesmo sentido de circulação regulamentado para a via, COM PREFERÊNCIA SOBRE OS VEÍCULOS AUTOMOTORES.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9503.htm

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  2. Olá, Eu gostaria de programar uma descida de bike em fevereiro com um grupo de amigos, sabem me informar se a Ecovias está impedindo a descida? E se temos de fazer algum tipo de comunicação?

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  3. Rapaziada, dia 08 de dezembro eu desci junto com mais uns 30, tava bom demais, realmente tinham a algumas arvores caidas no chão mas nada que atrapalhasse o passeio e realmente fomos escoltados pela policia até perto da rodoviaria de santos…quanto a ecovias….PALHAÇADA

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  4. Galera,
    Fizemos a Rota Márcia Prado com um grupo independente organizados através do Facebook com a Bike Zona Sul no último dia 8/12.
    Fora pequenos acidentes e quebras no caminho foi tudo muito tranquilo.
    Não houve qualquer proibição! A Polícia Rodoviária nos escoltou, como proteção, parte do caminho e a Polícia Militar fazia rondas na parte de Cubatão, o que evitou que nosso grupo tivesse problemas com assaltos.
    Enfim, quem não foi PERDEU!
    Willian, não sei se interessa, mas podemos fazer um relato da RMP deste ano, para não quebrar o excelente trabalho documental feito até então.
    Quanto á Estrada da Serra do Mar, em uma ação conjunta do Governo do Estado e Prefeitura de São Bernardo, ela será parcialmente reaberta neste domingo 15/12 com uma caminhada,
    informações no site da prefeitura.
    Em contato a promessa é que numa próxima etapa será oferecida condições para descer o mesmo trecho de bike.
    Vamos aguardar e cobrar. Quiçá no futuro não muito longe voltemos ao litoral por este caminho.

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    1. Legal, José, que bom que deu tudo certo com o passeio.
      Quantos foram? Eu quero descer nos próximos dias. Você acha que está tranquilo na região de Cubatão? Estão fazendo policiamento? Tenho lido as mais diversas opiniões sobre a segurança da rota. Não queria deixar de fazer esse passeio por causa desses problemas.
      Obrigado!

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  5. Engraçado é que se pagassem os R$ 93.000,00 que a Ecovias tinha pedido para liberar a descida não haveria risco para os ciclistas, como não aceitaram pagar agora tem?

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  6. Já passou da hora dos ciclistas se juntarem e fazer um protesto pacífico na Imigrantes. Alguns minutos parada já seria o suficiente para chamar a atenção. Mas teria que ter muita gente, mas muita gente mesmo a ponto da polícia não poder dar conta.
    Sou de Guarulhos, no auge das manifestações nacionais, a alguns meses, conseguimos para a Rodovia Dutra (que é uma rodovia federal) e o tão poderoso aeroporto internacional de Guarulhos por várias horas.
    Parar a Imigrantes não seria tão difícil. Acho que seria um grande marco na luta dos direitos dos ciclistas.

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  7. Bicicletas não pagam pedágio, não pagam IPVA, não consomem combustível e usam pneus menores e mais baratos do que os carros. Ela é uma afronta aos interesses econômicos de governos e corporações. A lógica de tal proibição é essa!

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  8. Eu queria entender por que o caminho do mar não pode ser usado por bicicletas. É uma estrada segura, maravilhosa e… fechada ao público!

    Também queria entender por que com tanta demanda de passageiros com e sem bicicleta os trens não chegam nem sequer a Paranapiacaba, quanto mais Cubatão e Santos…

    A política de transportes em São Paulo anda na contramão. A propina na Alstom e da Siemens não foi suficiente para coloca-la nos trilhos.

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    1. Jura, a informação (extraoficial) que temos é de que essa estrada está interditada definitivamente pois foi retomada pela natureza ao longo do tempo e em algumas partes está até destruída, sendo impossível transpor alguns trechos. Por isso a entrada é proibida.

      Quanto aos trens, optou-se pela solução rodoviarista na segunda metade do século XX, com os investimentos direcionados todos à indústria automobilística e à infraestrutura de apoio, contribuindo enormemente para o sucateamento da malha ferroviária. Moderno era o automóvel, ferrovia era coisa do passado. Deu no que deu.

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