O ciclista que se dane: mais uma vez, interdição de ciclovia coloca vidas em risco
Interdição na Radial Leste segue padrão da gestão Covas, ignorando o dever de garantir segurança durante a obra e o direito do ciclista de usar a via
Atualizado em 01/12/2020: depois de nossa matéria denunciando que a interdição deixava os ciclistas desprotegidos, prefeitura segregou faixa com cones na avenida – veja em vídeo
A ciclovia da Radial Leste amanheceu com uma interdição nesta quinta 26, aparentemente para reforma. A ação segue o lamentável padrão adotado na gestão Bruno Covas (PSDB), que imputa ao próprio ciclista a responsabilidade por sua segurança, pedindo pra que continue seu trajeto a pé.
Que se pese o benefício da manutenção pela qual vêm passando várias estruturas – com reforma de pavimento, recolocação de tachões com menor espaço entre eles e repintura -, durante os trabalhos de reforma os ciclistas são expostos de forma perigosa ao tráfego motorizado.
Muitas vezes os ciclistas acabam por sofrer ameaças de motoristas que não aceitam sua presença no viário e com isso atuam de forma agressiva, colocando-os em risco propositalmente. Porque, concluem eles, o ciclista “deveria estar na ciclovia”. Sua presença no viário é vista como uma transgressão, uma infração e uma provocação. Quem pedala diariamente sabe bem disso.
Cartaz para se furtar da responsabilidade
O aviso que pede ao ciclista para seguir na calçada desmontado serve unicamente para tirar a responsabilidade da prefeitura em caso de atropelamento no trecho. Afinal, alegarão comunicação e jurídico da prefeitura numa situação dessas, se a pessoa não seguiu a pé como pede a placa ela terá assumido o risco de pedalar junto aos carros.
Quem optou por “resolver” o problema com essa placa ignorou, talvez propositalmente, que os ciclistas continuarão pela pista. Isso é óbvio especialmente no caso da Radial Leste. Quem vai desmontar da bicicleta e atravessar as oito ou dez pistas da avenida, para seguir empurrando a bicicleta por centenas de metros em meio a pedestres e pontos de ônibus, numa calçada que já é péssima até para caminhar?
Se as pessoas que tomam as decisões na prefeitura, na secretaria de transportes e na CET não pensaram nesses aspectos ao estabelecer uma placa dessas como solução para a situação, estão no trabalho errado. A vida dos cidadãos não pode estar em suas mãos. Principalmente porque têm adotado essa solução de forma recorrente – e continuarão fazendo isso.
Recomendação ignora legislação
Além de desconsiderar a realidade da dinâmica de circulação do veículo bicicleta, a placa também distorce e ignora o direito previsto no Código de Trânsito (CTB):
Art. 58. Nas vias urbanas e nas rurais de pista dupla, a circulação de bicicletas deverá ocorrer, quando não houver ciclovia, ciclofaixa, ou acostamento, ou quando não for possível a utilização destes, nos bordos da pista de rolamento, no mesmo sentido de circulação regulamentado para a via, com preferência sobre os veículos automotores.
Esse direito deveria ser garantido pela prefeitura através da CET, com sinalização avisando os motoristas e isolamento de espaço com cones para proteger as vidas dos cidadãos que passarem por ali de bicicleta. E isso também está previsto no Código de Trânsito (CTB):
Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:
(…)
II – planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e da segurança de ciclistas
Portanto, o ciclista que circular pela via nesses trechos estará exercendo seu direito como condutor de um veículo. Se ele for atropelado, a responsabilidade legal será da prefeitura, que deixou de promover sua segurança como determina a Lei Federal.
Servidores públicos podem ser punidos
De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, é necessário sinalizar a obra e indicar caminhos alternativos. Descer e empurrar pela calçada do outro lado da avenida não é um caminho alternativo: é uma indicação para abandonar aquele meio de deslocamento, como se ele fosse proibido naquele trecho (mesmo não sendo).
Art. 95. Nenhuma obra ou evento que possa perturbar ou interromper a livre circulação de veículos e pedestres, ou colocar em risco sua segurança, será iniciada sem permissão prévia do órgão ou entidade de trânsito com circunscrição sobre a via.
§ 1º A obrigação de sinalizar é do responsável pela execução ou manutenção da obra ou do evento.
§ 2º Salvo em casos de emergência, a autoridade de trânsito com circunscrição sobre a via avisará a comunidade, por intermédio dos meios de comunicação social, com quarenta e oito horas de antecedência, de qualquer interdição da via, indicando-se os caminhos alternativos a serem utilizados.
§ 3º A inobservância do disposto neste artigo será punida com multa que varia entre cinquenta e trezentas UFIR, independentemente das cominações cíveis e penais cabíveis.
§ 4º Ao servidor público responsável pela inobservância de qualquer das normas previstas neste e nos arts. 93 e 94, a autoridade de trânsito aplicará multa diária na base de cinquenta por cento do dia de vencimento ou remuneração devida enquanto permanecer a irregularidade.
A política do “o ciclista que se dane”
Já faz mais de dois anos que esse descaso acontece. Em agosto de 2018, quando removeram a ciclofaixa da Av. Marquês de São Vicente para reformas, já alertávamos sobre o fato. Os ciclistas ficavam desprotegidos na avenida, que tem fluxo contínuo de ônibus e caminhões, com motoristas abusando da velocidade a todo momento.
A prefeitura a essa altura já estava sob o comando de Bruno Covas, que a assumiu em abril, com a saída de João Doria para concorrer ao governo do estado nas eleições daquele ano. A situação só foi resolvida após exposição na imprensa. E, ainda assim, apenas dias depois, com o retorno da sinalização definitiva, sem que houvesse segregação temporária.
Em uma dessas remoções, na R. Vergueiro, a falta de segregação temporária chegou a causar um atropelamento.
Não é possível que em dois anos não tenham aprendido essa lição. Sobretudo porque a situação voltou a acontecer em outras ocasiões e, depois que as interdições começaram a ser fortemente criticada por cicloativistas e pela imprensa tradicional, em alguns casos a CET chegou a adotar medidas de segregação.
Alguns grupos de pedal da zona leste têm se mobilizado para fazer propaganda política nessas eleições, induzindo sutilmente seus membros a votarem em determinado candidato. Já que há o interesse em influenciar a política municipal, esses grupos deveriam se organizar também para protestar contra essas e outras situações de desrespeito à vida de quem pedala, pois a solução depende diretamente de ação da atual gestão.
Segregação somente com cobrança e exposição
Ao longo de 2019, várias ciclofaixas continuaram a ser removidas temporariamente para reforma, sem aviso e sem sinalização. Depois de forte repercussão em uma delas, a da Arthur de Azevedo, em que muitos ciclistas precisavam trafegavam no contrafluxo (de frente para os carros), a CET finalmente segregou o espaço com cones enquanto a pintura não era refeita.
“Bom, por certo passarão a fazer dessa forma a partir de agora”, pensamos. Estávamos enganados.
Descendo à via na faixa esquerda
Ao longo de 2020, as interdições continuaram seguindo sem sinalização. E chegaram às ciclovias segregadas, como as de canteiro central. Na Av. Eliseu de Almeida, em certo momento os ciclistas eram obrigados a descer em um trecho alto, para conseguir desviar da interdição e prosseguir sua viagem na faixa esquerda da via. E isso numa avenida com trânsito altamente agressivo e veículos pesados, onde ocorreram várias mortes antes da implantação da ciclovia.
A mesma situação ocorreu em outras ciclovias de canteiro central, como Faria Lima e até Avenida Paulista. Em situações como essa, é fora da realidade acreditar que o ciclista interromperá sua viagem, retornará até encontrar uma faixa de travessia e desmontará da bicicleta para caminhar centenas de metros, talvez um quilômetro, empurrando seu veículo em meio a pedestres e obstáculos como degraus, desníveis, buracos, lixeiras, postes e pontos de ônibus por vezes cheios, até passar pela área de obra para que possa retornar à ciclovia.
A prefeitura chegou a colocar segregação temporária em estruturas de maior visibilidade, como Avenida Paulista e Faria Lima, reservando uma faixa de rolamento na via para os ciclistas. Mas só depois que a situação foi exposta e houve cobrança pela sociedade.
Já nas ciclovias mais afastadas do centro, o procedimento de interdição em que o ciclista é obrigado a se virar continua ocorrendo, mesmo com todas as reclamações e polêmicas ocorridas em intervenções anteriores.
Sasha Hart, membro da Câmara Temática da Bicicleta (CTB), conta que o grupo já pautou este problema várias vezes nas reuniões com a Secretaria de Mobilidade e Transportes, pedindo providências que garantissem a segurança e o direito de pedalar dos ciclistas durante essas obras. “A Prefeitura resistiu, mas eventualmente topou considerar, com base em avaliação da CET da magnitude da necessidade de cada local. Mas não foram informados critérios claros sobre isso, nem foram compartilhadas eventuais avaliações.”
O que era de se esperar é que experiência fosse adquirida com as situações anteriores. Seria importante ter aprendido de primeira com um erro desses, que claramente pode resultar em morte, para que não ocorresse novamente. Ainda mais tantas vezes.
O teste do automóvel
Para saber facilmente se uma situação é absurda em relação ao veículo bicicleta, faça o teste do automóvel: a mesma situação seria aceitável se o cidadão estivesse se deslocando de carro? Ou mesmo de moto?
Numa reforma de avenida ou rodovia, pediriam para descer do veículo e empurrar pela calçada/acostamento? Ou isolariam uma pista com cavaletes e cones para os motoristas terem seu deslocamento garantido e seguro?
Se a prefeitura fizesse um motorista “se virar” num trecho em obras, sem sinalização/segregação que o protegesse dos demais motoristas, e nesse momento ele acabasse por colidir com outro veículo, quem criou as condições para que essa colisão acontecesse? De quem, portanto, seria a responsabilidade?
Se esses exemplos parecem exagerados e não te convencem, deixe-me ilustrar esse segundo caso da seguinte forma: um motorista acaba atropelando um ciclista que desceu à via para desviar de uma obra que impedia seu trajeto. Quem criou as condições para que esse atropelamento acontecesse? A prefeitura teria ou não responsabilidade? Convenhamos que a chance disso acontecer na Radial Leste, onde os motoristas abusam da velocidade sabendo os locais dos radares, é grande. E óbvia.
Utilizo a ciclovia e acompanho a reforma, agora em julho 21 estão finalizando, mas tem muita falhas, com empoçamento, rachaduras e buracos, desnível e quinas vivas na estação Penha e árvores e postes que incadem a ciclovia, trechos não reformados. Não encontro uma ouvidoria específica. Vcs podem indicar?
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