Murilo Couto pode responder na justiça por enaltecer crime de trânsito

Alguns comediantes recorrem à polêmica para alcançar o sucesso. Ou ao humor de humilhação, para agradar a uma parcela de audiência sem precisar pensar muito. Ao que parece, são essas as premissas que norteiam o trabalho de Murilo Couto, comediante que desde 2011 serve de escada para Danilo Gentili e seu humor “politicamente incorreto”, no talk-show humorístico exibido atualmente no SBT.

Nesse final de semana, viralizou nas redes o vídeo de um show do artista, que depois de fazer piada sobre as roupas de ciclismo, dispara: “dou razão ao motorista de ônibus que atropela”, justificando que o ciclista atrapalha quem está a 80 km/h.

Vídeo original foi retirado do ar

O trecho é parte de um vídeo maior que estava em seu canal do YouTube, mas foi retirado do ar depois que começou a repercutir negativamente. Pela mensagem que a plataforma mostra, não foi removido pelo YouTube, mas pelo próprio autor, pois foi apenas configurado como privado.

Ou seja, o vídeo continua na plataforma, mas nesse momento só o autor pode vê-lo, podendo disponibilizá-lo novamente quando a poeira baixar.

Apesar de não estar mais no canal, pessoas indignadas com o que viram baixaram o vídeo e o estão distribuindo informalmente, por mensagens de WhatsApp e em publicações no Instagram e no Facebook.

“Dou razão a quem atropela”

Tenho uma raiva, ó, vou te falar… No caso de ciclista, eu dou razão ao motorista de ônibus que atropela! [faz gestual como se estivesse jogando o ônibus com raiva para cima de um ciclista ao lado]

Sai da frente, filha da p*ta! Saúde é o car*lho! [e repete o gestual simbolizando um atropelamento proposital, que na verdade é um crime de trânsito]

Seis da manhã na faixa de carro!

Taqueopariu, tenho uma raiva quando tá trânsito aí vem um ciclista: “ai, é meu direito…”

Teu direito o quê? Não tá vendo que tá todo mundo a 80, tu tá a 20?

“É meu direito…” Ah é? Então toma o direito aqui! [e faz mais uma vez o gesto de jogar o carro/ônibus para cima do ciclista]

Conduta criminosa

Jogar um ônibus, caminhão, carro ou moto para cima de um ciclista que utiliza a via não é apenas uma infração passível de multa (artigos 201 e 220 do Código de Trânsito Brasileiro, entre outros).  O que Couto estimula com sua “piada” é nada mais que um crime, previsto no Código Penal:

Art. 132 – Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:

Pena – detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.

Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais.

A conduta que o artista enaltece em seu show pode inclusive ser considerada tentativa de homicídio.

Em 2014, o motorista de ônibus que atropelou e matou a ciclista Márcia Prado na Avenida Paulista foi condenado pelo Art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro, “praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor”.

“Não nos parece crível que o motorista de um coletivo possa justificar sua conduta imprudente na condução de veículo de grande porte imputando à ciclista a culpa pelo evento, quando reconhece ter visto a vítima na via de rolamento”, afirma o acórdão sobre a indenização à família da ciclista. A empresa de ônibus foi condenada a pagar R$ 100 mil de indenização.

Apologia ao crime

Não é brincadeira e nem piada: para muita gente que se indignou com o vídeo, o humorista está fazendo apologia ao crime.

Art. 287 – Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime:

Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa.

E não é à toa que quem estimula uma prática criminosa também é responsabilizado penalmente. Transformar um crime desses em piada, justificando uma agressão que pode ser fatal, incentiva o comportamento que pode resultar em mortes.

Parte de sua audiência pode achar que é engraçado jogar um carro ou ônibus para cima de um ciclista, já que ele está ali “atrapalhando” mesmo. Quem fala a um grande público precisa ter responsabilidade e noção das consequências de sua normalização de uma conduta dessas.

Humor de humilhação e bullying é um caminho fácil para quem tenta ser comediante. Afinal, não é preciso pensar muito para ser considerado engraçado: basta fazer a audiência se sentir superior ao grupo que é retratado, para que riam de desdém.

Mas quando esse grupo já sofre ameaças de morte diárias, quem as pratica se sente fortalecido em continuar. E quem ainda não o fez, mas já sentiu vontade de oprimir e ameaçar um ciclista que lhe “incomoda” somente por estar ali, se sente finalmente estimulado a fazê-lo. Afinal, “é engraçado”.

Repercussão

Ciclistas, atletas, sites e entidades do segmento se manifestaram contra o gracejo irresponsável.

A atleta olímpica Jaqueline Mourão escreveu que “deviam pensar antes de fazer piadas sem graças como essa” e que, como atleta representante do nosso país, se sentiu “profundamente triste e chateada com o vídeo de um ‘humorista’ falando de forma negativa a nós ciclistas”.

Fabio Nazareth, do Pedalentos, ponderou que Murilo “usa de violência em suas palavras para criticar quem usa a bicicleta” e fez uma reflexão sobre a necessidade de posicionarmos quando ouvimos discursos como esse, para não sermos coniventes.

O perfil Bicicleta e Companhia lembrou que ocorrem anualmente 40 mil mortes no trânsito e foi mais incisivo nas críticas: “Quando eu lamentavelmente saio para as Bicicletadas indo pendurar ‘ghost bikes‘ (bicicletas brancas instaladas em locais onde um Ciclista faleceu), penso no que podemos fazer para humanizar mais o trânsito e conseguir mais respeito com os ciclistas. Nosso alcance é limitado. Aí vem um humorista, que pra alguns tem carta branca para brincar com qualquer assunto e simplesmente ‘humoriza’ o assunto, eu não ri, não achei graça e não acho que seja algo a se orgulhar de brincar.”

Outro esportista a se manifestar foi o triatleta Raphael Pazos: “Enquanto muitos lutam por mais paz, harmonia, respeito e compartilhamento seguro nas vias públicas, outros preferem fazer piadas das vidas que foram ceifadas e daqueles que sobreviveram porem vivem com sequelas gravíssimas em decorrência da VIOLÊNCIA no trânsito. Certamente o ‘humorista’ e todos da plateia que aplaudiram e deram gargalhadas nunca perderam um amigo ou ente querido no trânsito. E, de coração, espero que nunca tenham que passar por essa dor.”

O coletivo Pedala Manaus classificou a fala como criminosa, apontando que ela “desrespeita quem anda de bicicleta, estimula ainda mais atitudes criminosas contra ciclistas e principalmente, banaliza as mortes e crimes de trânsito”.

Tomaz Bueno, do Vida Adaptada, juntou ao vídeo do comediante fotos de ciclistas tiveram sua vida levada por motoristas no trânsito, como Márcia Prado e Marina Harkot. E a União de Ciclistas do Brasil publicou: “ficamos alarmados que uma pessoa pública estimule que um motorista possa vir a ferir ou matar um ciclista”.

A Aliança Bike divulgou nota de repúdio em seu site e redes sociais. “As falas do humorista atravessam como um afiado punhal os corações de milhares de famílias em luto e em busca de justiça por crimes de trânsito que ainda são negligenciados no país.”

“Não nos cabe dizer quais são os limites do humor, mas sim alertar que, quando se trata da vida e da sobrevivência de pessoas, o efeito imediato das falas do Sr. Murilo Couto é a banalização das mortes. Sim, uma piada pode promover mais mortes e a atitude do humorista pode ser interpretada como incitação ao crime (art. 286 do Código Penal) e discurso de ódio, travestidos de ‘humor’.”

Consequências

O comediante poderá ser responsabilizado na justiça por conta dessa apologia. Alguns advogados e entidades já avaliam tomar medidas contra Couto.

A uma internauta que questionou se cabia acionar o Ministério Público, a Aliança respondeu: “nossos advogados estão analisando as medidas cabíveis”.

Consultado pela nossa redação, o advogado Kristofer Willy aponta que “cabe uma ação de dano moral coletivo, a ser movida por alguma associação com mais de um ano de existência” e que “um promotor que se interesse pela causa pode denunciá-lo por apologia ao crime”.

Entramos em contato com a empresária do artista por e-mail na manhã desta segunda, mas até o fechamento da matéria, às 20h30, não obtivemos resposta.

Histórico anticiclista

Não é a primeira vez que Murilo Couto demonstra que considera o atropelamento de ciclistas uma grande piada. Em um vídeo em que ele aparece com outros humoristas, um deles, Victor Camejo, conta sobre o dia em que atropelou uma pessoa que estava de bicicleta na rua. E relata no final da história:

“Um silêncio horroroso no carro (…) e eu olho pro retrovisor, nervoso que nem um car*lho. Esse aqui [apontando para Murilo Couto], em posição fetal, rindo pra car*lho. E eu virei e falei ‘Murilo, que p*rra é essa? Por que que você tá rindo? Nós atropelamos uma pessoa.” (…) E aí cara, ele olhou pra mim. E a única coisa que ele me disse foi: “ele voando foi muito engraçado.” Couto continua rindo e não desmente.

Esse vídeo estava disponível no YouTube até a tarde desta segunda-feira, mas no início da noite também foi marcado como privado e, com isso, retirado do ar.

Outras situações em que tentou fazer humor ridicularizando ciclistas foram em uma pegadinha, onde ele era um fiscal que atormentava quem passava de bicicleta, inventando descumprimentos absurdos da lei; e em uma cena do programa de Danilo Gentili em que reclamavam das ciclovias, onde representando um ciclista mal educado e arrogante ele diz que “os ‘bikers’ são muito organizados, assim como os motoboys e o PCC”.

Humor de verdade

Quer ver alguém sendo engraçado satirizando ciclistas, sem que precise recorrer ao ódio e ao incentivo a agressões e morte? Veja esse vídeo do João da Nica, um motoboy youtuber de Campinas que não se considera humorista profissional.

Pra terminar a matéria mais leve, depois da indignação acumulada. 😉

Preferimos deixar aqui na página o vídeo do João, divulgando um trabalho que merece aplausos e não nosso repúdio.

Limites do humor

Para refletir se devem ou não haver limites para o humor e quais as consequências disso, recomendamos a leitura destas entrevistas e artigos:

‘Não dá mais para diminuir e humilhar as pessoas’ (Fabio Porchat, em entrevista ao Estadão)

‘Faço um humor sem humilhar os outros. Prefiro avacalhar eu mesmo’ (Marco Luque, em entrevista ao Jornal Cruzeiro do Sul)

Fazer humor não significa ofender ou humilhar (artigo de Victor Vasconcelos para o portal Sem Barreiras)

O direito de rir (Prof. Dr. Yves de La Taille, docente do Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da USP)

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