Por que os ciclistas continuam (e continuarão) usando a Avenida Paulista
Por mais que se afirme que a avenida é perigosa para a circulação em bicicleta, ciclistas continuarão a trafegar por ali. Entenda os motivos.
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Centenas de km de ciclovias previstos desde 2008, incluindo Av. Paulista e Eliseu de Almeida Ciclistas podem circular em avenidas de tráfego |
Alguns motoristas insistem que ciclistas não deveriam circular na Avenida Paulista. Alguns, sem medo de serem politicamente incorretos, afirmam que as bicicletas atrapalham seus carros; outros alegam fatores de segurança viária, com o discurso de que a avenida não seria segura para ciclistas.
Quando não passam pelos preconceituosos “vá pedalar no parque” e “rua não é lugar de bicicleta”, as recomendações são invariavelmente para usar as vias paralelas: Alameda Santos no sentido Paraíso e ruas Cincinato Braga, São Carlos do Pinhal e Antônio Carlos no sentido oposto.
A falta de segurança e sua causa
Segundo dados da CET, a Av. Paulista é a via com mais acidentes com ciclistas por quilômetro em São Paulo. Uma de suas esquinas também é considerada, historicamente, a líder de atropelamentos de pedestres na cidade, com a sinistra alcunha de “esquina da morte”. Isso faz dela uma avenida perigosa, certo? Depende do critério utilizado.
A avenida, em si, não tem nada de perigosa. É ampla, com faixas largas, bem iluminada, sem curvas ou desníveis. Tem asfalto sempre em bom estado, espaço suficiente para ultrapassagens seguras e as mãos de direção são isoladas por um canteiro central. A visibilidade nela é ótima para qualquer participante do trânsito, inclusive pedestres e ciclistas. Não é uma avenida com curvas que escondem a próxima quadra, irregularidades que surpreendem os motoristas, caminhões invadindo a pista contrária e nem descidas íngremes que estimulam a velocidade.
Mas, se a avenida em si é segura, por que tantos acidentes?
Comportamento
Com oito faixas de rolamento, largura mais que suficiente para trafegar acima do limite de 50km/h e nenhuma fiscalização de velocidade, a via passa a clara impressão de ser território exclusivo de automóveis e ônibus. Quem “compra” essa impressão não aceita bicicletas circulando por ali, como também não tem paciência para os pedestres que estejam terminando a travessia quando o sinal abre (ambos os casos previstos e garantidos pelo Código de Trânsito).
Para motoristas com esse perfil, o congestionamento derivaria unicamente de falta de espaço para os automóveis e da presença de componentes supostamente estranhos ao trânsito, como bicicletas, pedestres, caminhões e ônibus fretados, que “roubariam” o espaço necessário aos carros. Por esse raciocínio, uma bicicleta em baixa velocidade estaria atrapalhando e congestionando – o que sabemos não ser verdade. Já os carros, que ocupam uma área muito maior da via pública mesmo em movimento, não influiriam nessa situação.
Dentre essas pessoas, há os que tentem ensinar ao ciclista que ele não deveria invadir o território exclusivo do automóvel. Essa lição assume a forma de “fina”, ou de uma fechada ao virar em uma rua, seguindo o pensamento “tenho prioridade, estou passando e saia da minha frente porque eu não vou reduzir”. E esse comportamento de risco causa a maior parte das mortes, pois um pequeno esbarrão pode levar o ciclista para debaixo das rodas daquele veículo ou de outro que venha atrás.
Para sermos justos, poucos são os motoristas com esse comportamento, percentualmente falando. Mas essa minoria agride, assusta, fere e mata.
Cada vez mais bicicletas
Apesar da falta de receptividade dos motoristas, muitas pessoas passam em bicicletas pela avenida, principalmente no horário de pico da tarde, como mostra o gráfico ao lado.
Os dados são da contagem fotográfica realizada pela Ciclocidade em 2010. Naquela ocasião, foram fotografados 733 ciclistas na Av. Paulista em um espaço de 16 horas. A média de 52 ciclistas por hora equivale a praticamente uma bicicleta por minuto, mesmo sem haver ciclovia ou qualquer outro tipo de sinalização no local.
Mais gente do que você imaginava? Então perceba que essa contagem foi feita em 2010. De lá para cá, a quantidade de pessoas utilizando a bicicleta em seus deslocamentos cresceu a olhos vistos. Uma ciclovia na avenida terá alta utilização, como vem acontecendo com a ciclovia da Av. Faria Lima, um local onde quase não passavam ciclistas e hoje circulam cerca de dois mil por dia (ou mais).
O motivo de tantos ciclistas
Se a bicicleta não é bem aceita na avenida, por que ainda assim tanta gente resolve passar de bicicleta por ali?
Para responder a essa pergunta, é importante entender que as pessoas raramente saem de casa para passear na Paulista de bicicleta. Quase sempre, trafegam ali para chegar a algum lugar, como os motoristas que ali estão. E para muita gente esse é o melhor caminho quando se está de bicicleta, por ser o mais curto e mais plano.
O eixo do “espigão”, que vai do Jabaquara a Perdizes, é relativamente plano, com um desnível irrisório e bem distribuído ao longo de seus mais de 13 km de extensão. Qualquer rota alternativa implica em muitas subidas e, geralmente, aumento da distância percorrida – o que todo ciclista que está realizando um deslocamento sem intenção de treino costuma evitar.
Paralelas
Por mais que se peça, obrigue ou incentive a circulação de ciclistas nas vias paralelas, muita gente continuaria utilizando a Paulista para se deslocar em bicicleta, por dois motivos que se complementam: aclives e falta de segurança viária. Como a questão dos aclives é bastante clara, comentaremos apenas a questão da segurança.
Na Alameda Santos, o principal problema está nos trechos de subida, onde motoristas embalados pela descida anterior e acelerando livremente devido à falta de fiscalização se tornam impacientes com qualquer veículo em baixa velocidade à sua frente. Numa situação como essa, os maus motoristas buzinam, forçam passagem, passam perto demais e fecham o ciclista, principalmente por se tratar de uma via com menos faixas de rolamento e veículos estacionados, que dificultam as ultrapassagens.
No sentido oposto, no trecho inicial, relativamente plano, há a presença intensa de ônibus. Além de virarem à direita ao chegar na Brigadeiro, as faixas mais estreitas e em menor quantidade dificultam aos motoristas dos coletivos a realização de ultrapassagens. Parte deles acaba forçando a passagem, com o veículo de várias toneladas a centímetros do ciclista, geralmente com velocidade alta devido à ligeira descida. Um risco fortíssimo.
Além do aumento do esforço físico e da distância ao adotar esses trajetos paralelos, essas situações de risco com carros e ônibus assustam e afastam os ciclistas dessas vias. Por isso, muitos ciclistas se sentem menos seguros nessas paralelas do que na avenida principal.
É curioso que parte das pessoas que sugerem aos ciclistas que peguem as vias paralelas com aclives sejam as mesmas que alegam haver subidas demais em São Paulo para que a bicicleta seja adotada.
Deslocamentos humanos
As grandes avenidas costumam ser construídas em regiões de fundo de vale ou sobre “espigões”. Isso faz com que as paralelas geralmente tenham aclives, tornando a avenida o caminho mais plano, reto e geograficamente adequado a quem usa a bicicleta.
Em uma cidade para pessoas, esses caminhos seriam priorizados para pedestrianismo e meios movidos a propulsão humana, deixando o ônus dos aclives para quem só precisa pisar em um pedal ou torcer uma manopla para vencê-los.
Não adianta insistir para que o ciclista escolha outro trajeto: quem se desloca usando um meio que dependa de esforço físico (a pé, bicicleta, skate, patins e outros) tende sempre a buscar o caminho mais curto e plano. É isso o que também faz as pessoas atravessarem fora da faixa de pedestres, por exemplo, quando utilizá-la implicaria em um deslocamento de dezenas de metros.
São escolhas lógicas, naturais e compreensíveis, que devem ser aceitas e protegidas pelo poder público, além de previstas e incentivadas por quem planeja a infraestrutura viária e o meio urbano, tornando a cidade mais amigável e segura para quem for a pé ou de bicicleta e incentivando os deslocamentos sustentáveis, que fazem bem para as pessoas e para as cidades.
É curioso que parte das pessoas que sugerem aos ciclistas que aumentem seu trajeto para desviar da avenida Paulista sejam as mesmas que alegam que as grandes distâncias na cidade são um impeditivo para que a bicicleta seja adotada.
Discurso prejudicial e perigoso
Declarar que a Avenida Paulista não é segura para ciclistas, como se isso fosse uma característica imutável da via, é ignorar a necessidade de que essa situação mude, atingindo um patamar adequado de segurança viária.
Afirmar que ciclistas não devem usar a Avenida Paulista é ser conivente com o risco que oferecem os motoristas que trafegam por ela de forma irresponsável. É aceitar que a conduta perigosa de um veículo automotor seja um argumento válido para que outros participantes do trânsito, como bicicletas e pedestres, cedam seu direito de circulação para que a irresponsabilidade e a impunidade possam continuar a vigorar. Isso estimula e municia de argumentos os motoristas que colocam ciclistas em risco propositalmente, de forma criminosa, com o objetivo de “educá-los” a não utilizarem as avenidas.
Quando um representante do poder público ou a própria imprensa fazem essas afirmações, o efeito nocivo é potencializado, pois passam a ter o peso de regra de conduta, estimulando ainda mais o comportamento agressivo.
Esse estímulo pode resultar em mortes, sequelas e amputações – infelizmente de forma bastante indireta, tornando impossível estabelecer uma relação de causalidade que imputaria responsabilidade legal a quem divulga publicamente esse conceito distorcido, fortalecendo a intolerância e as agressões aos ciclistas que trafegam na avenida.
Deve-se combater as causas e os causadores do problema, tornando a avenida receptiva e segura a todos os cidadãos, em vez de responsabilizar as vítimas e defender o cerceamento de seus direitos.
Ciclovia é necessária
Na avenida Paulista ocorreram atropelamentos emblemáticos, como as mortes de Márcia Prado (2009) e Julie Dias (2012) e o caso de David Santos Souza (2013), que teve seu braço arrancado ao ser atropelado em área segregada com cones por um motorista embriagado. Mais recentemente, Marlon Moreira de Castro também perdeu a vida pedalando na avenida.
A Secretaria de Transportes da cidade (SMT) divulgou em setembro de 2014 detalhes sobre o projeto de uma ciclovia no local (veja aqui). A previsão é de que as obras, que iniciam em janeiro de 2015, estejam concluídas até junho.
Alguns cidadãos se posicionaram contrários a essa ciclovia, como o vereador Andrea Matarazzo (PSDB), que chegou a afirmar que “se faz de tudo para os ciclistas e se esquece dos carros” e que o canteiro central, onde ela será construída, é “essencial para a segurança de pedestres e motoristas“. Devido à repercussão negativa de suas declarações, Matarazzo posteriormente mudou de opinião, passando a ser favorável à estrutura.
A Associação Paulista Viva também contesta a construção da ciclovia, alegando serem necessários “estudos mais aprofundados”, para que possa a intervenção possa “atender a todos os cidadãos de forma justa”. Entre outros questionamentos, apontam uma suposta “descaracterização da ideia de boulevard” da avenida. O posicionamento da entidade continua.
Enquanto uma pequena parte dos paulistanos ignora a importância de uma ciclovia no local, ou discute se o projeto apresentado é perfeito, se agrada a todos ou se vai tornar a avenida “feia”, nós, ciclistas, continuaremos pagando com nossas vidas.
Gostaria de saber se é bom para os ciclistas as atuais normas de trânsito para eles, pois quase todos os dias os vejo atravessando no sinal vermelho.
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Normas de transito para ciclistas, somente se emplacar as bicicletas. Com isso, você tem como punir os ciclistas infratores. Porém, junto com o emplacamento, virá toda a burocracia e o pagamento de taxas, o que fará a esmagadora maioria (inclusive eu) abandonar de vez a bicicleta e voltar para o carro ou moto.
Acredito mais em nas ciclovias e uma infraestrutura para os ciclistas aliado com uma ampla e exaustiva campanha de educação e conscientização sobre os riscos de atravessar o sinal vermelho….
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É, Renato, tem razão, não pensei por esse lado. Mas então, cada ciclista segue a sua norma? Seria correto dizer que as normas em relação aos ciclistas se aplicam somente aos carros?
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Luciana, anos atrás, li um artigo em um site a respeito desse comportamento dos ciclistas, e numa pesquisa que houve na época, dizia que a maioria não respeita por pura repudia ao descaso do poder público em oferecer mais segurança a quem escolhe se locomover sobre 2 rodas. Não justifica correr risco fazendo isso (eu mesmo já fiz várias vezes, negar seria hipocrisia), mas faz sentido.
Some-se isso a ausência de campanhas de conscientização. Eu não me lembro de nenhuma campanha voltada para ciclistas com grande impacto.
São Paulo sempre foi (e ainda continuará sendo) uma cidade extremamente hostil com os ciclistas. E a maioria apenas retribui o descaso do governo, não respeitando nada.
A bicicleta, por tb ser considerado um veículo, deve seguir as mesmas normas de conduta no transito que os carros, obviamente.
isso deve mudar bastante nos próximos anos com o projeto das ciclovias + infraestrutura que vem sendo implantado na cidade.
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Renato, obrigada pelos esclarecimentos. E tomara que as coisas mudem mesmo depois das mudanças em infraestrutura. 😉 Quem sabe também não me atrevo a pegar uma bike,rs, ainda tenho medo!
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A exemplo de Amsterdan vamos colocar ferrovias nas avenidas e usar + bikes. Sem automóveis nas avenidas. Por uma cultura consciente!
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