Em 2018, o Ciclocomitê Paulista atuou em 42 reuniões e 12 visitas técnicas. Foto: Willian Cruz/VdB

O Poder Público realmente ouve os ciclistas?

Comitês, reuniões e grupos de trabalho com ciclistas são essenciais para garantir nossos direitos e a segurança nas ruas e estradas. Mas somos levados a sério?

Todos temos opiniões sobre o rumo que a cidade poderia tomar. E ouvir as opiniões da população é fundamental para o sucesso da administração de uma cidade ou estado. É por isso que existem os conselhos consultivos.

Governar uma cidade ou um estado é uma tarefa muito difícil e que envolve muitos desafios e muitos interesses. Conciliar a vontade das pessoas envolvidas certamente agradará alguns e desagradará a tantos outros.

Construir uma ciclovia, duplicar uma estrada ou fazer uma nova camada de asfalto podem (ou não) serem boas escolhas, a depender de vários fatores. Por exemplo, refazer o asfalto de uma avenida localizada em um bairro nobre todo ano pode não ser uma boa prioridade se estiver faltando merenda nas escolas públicas em um bairro vizinho.

Administrar cidades e estados é definir prioridades. E prioridades são escolhas que atendem a interesses. Portanto, administrar é equilibrar os interesses envolvidos.

Resta saber: como ter influência na formulação de políticas públicas para a sua cidade ou estado?

Reuniões do poder público com ciclistas acontecem na cidade de São Paulo há mais de 15 anos, desde o grupo “Pró-Ciclista” na gestão Kassab, uma iniciativa do então Secretário de Verde e Meio Ambiente Eduardo Jorge. Na foto, uma reunião da Câmara Temática da Bicicleta, em 2019. Foto: Willian Cruz/VdB

Invisíveis e indesejados

Para retomar brevemente um pouco da história, houve épocas recentes em que os ciclistas eram completamente invisibilizados. Só sendo muito idiota ou muito corajoso para utilizar a bicicleta além dos parques e praças. Levar a bicicleta nos trens e metrôs? Jamais! A proibição valia por si e ainda que os vagões estivessem vazios as bicicletas não poderiam ser levadas. Pedalar de casa para o trabalho? Nem pensar.

As ruas eram território proibido para quem não estivesse motorizado. Não importa se seu trabalho fosse a poucos quilômetros de sua casa: para chegar ao destino, a solução mais intuitiva seria evitar o uso da bicicleta (ainda que esta fosse a opção racional mais adequada).

Pode não parecer, mas esta época parece que foi ontem. Atravessar a Avenida Paulista de bicicleta já foi considerado uma maluquice e mais de uma vez a polícia interveio para obrigar os ciclistas a irem para as calçadas. Colocar dezenas de ciclistas em conflito com milhares de pedestres era a solução encontrada para não atrapalhar a circulação de carros e ônibus. Porque a cidadania, àquela época (e talvez até hoje) era comprovada através da potência dos motores.

Mas sempre que o poder público quer divulgar uma imagem bonita e saudável da cidade… voilá! Aparece uma pessoa sorrindo em sua bicicleta, em algum parque da cidade.

ciclista em campanha da prefeitura de são paulo
Detalhe do vídeo da campanha “Como não amar São Paulo”, produzido pela Prefeitura da Capital em comemoração aos 465 anos da cidade (2019). Imagem: PMSP/Reprodução

Conflito entre desejo e realidade

Parece que vivemos o desejo de um sonho dourado de uma cidade que a classe média/alta experimenta em suas férias no exterior: com transporte coletivo para todos os lados, bicicletas flutuando pela cidade e calçadas convidativas para passeios.

Ao mesmo tempo, vivemos a realidade dramática de nosso cotidiano, com horários de pico cada vez maiores, ônibus ilhados entre carros no congestionamento, trens lotados e trafegando lentamente por causa de “falhas operacionais diárias”.

É comum ouvir argumentos retóricos de que as cidades brasileiras são diferentes das europeias e que aqui não há espaço para o romantismo da bicicleta. Todavia esquecem que as cidades brasileiras já vivem, ao menos uma vez ao dia, momentos de terror automotivo por causa do trânsito caótico ou pela falta de estacionamentos adequados.

Enfim, naturalizamos uma cidade ruim, mas desejamos uma cidade agradável.

Quer exemplos? Vamos lá:

  • ir pedalando da capital até o litoral não precisa ser um evento anual, já que os ciclistas querem exatamente o que os motoristas querem: chegar na praia, pegar sol, entrar no mar, andar na areia, etc.
  • em vez de pretender estacionar carros em um calçadão, ir ao Teatro Municipal de noite poderia ser uma agradável caminhada até o metrô
  • as estações de trens e metrôs poderiam ter locais seguros para estacionar bicicletas, facilitando assim o final/começo de um deslocamento curto
Ciclistas ainda são tratados como infratores ao exercer seu direito de circulação em estradas paulistas. Na imagem, desafiavam proibição na Rodovia dos Imigrantes, para conseguir descer a Santos pela Rota Marcia Prado, em 2010. Foto: Willian Cruz/VdB

Ciclistas conquistando espaço

Nós, ciclistas, somos apenas pessoas que nunca foram ouvidas na implantação de políticas de mobilidade. E sempre fomos escanteados para fora do caminho daqueles que planejavam e tinham direito à cidade. Somos historicamente esquecidos na formulação de políticas públicas.

Felizmente, através de muita insistência isso começou a ser deixado no passado.

Quando os conselhos participativos com ciclistas foram criados em São Paulo (CMTT em 2013 e CTB em 2015) houve diversas comemorações. Tínhamos um sentimento de que até que enfim seríamos ouvidos pelo Poder Público na construção das políticas de mobilidade envolvendo bicicletas.

Marina Harkot, comemorando sua eleição como representante dos ciclistas no Conselho Municipal de Trânsito e Transporte (CMTT). Foto: Arquivo pessoal

Agora, queríamos ser ouvidos para tentar trazer alguma racionalidade para uma estrutura que é tão agressiva com pessoas que querem chegar ao seu destino usando uma bicicleta, caminhando ou de transporte público. Temos argumentos jurídicos, ambientais, educacionais, lógicos, econômicos, urbanísticos…. temos muito a dizer, mas para isso precisamos ser escutados.

Ser escutado é o mínimo do mínimo. Na verdade queremos que o poder público considere que existimos e que fazemos parte das cidades. E portanto também queremos ir do ponto A ao ponto B com segurança e conforto.

Entraves

A cidade de São Paulo criou a Câmara Temática da Bicicleta (CTB) e o Governo do Estado criou o Ciclo Comitê Paulista (CCP) com um objetivo comum: trazer os ciclistas para o debate burocrático das políticas de mobilidade.

Os entraves colocados pelo poder público para a participação popular são sutis-mas-nem-tanto. Por exemplo: para a última eleição do Ciclo Comitê Paulista (órgão estadual que reúne ciclistas, poder público e concessionárias de rodovias) a votação foi realizada EXCLUSIVAMENTE de forma presencial na capital. Essa situação limitou a participação de todas as demais cidades do interior e do litoral. A insatisfação dos ciclistas não foi sequer considerada, já que não houve abertura para debate sobre o edital e, ainda mais, após o edital ser publicado não houve formas para dialogar sobre essa imposição.

Pode parecer uma loucura mas é exatamente isso: os ciclistas querem estar dentro da burocracia, para poder dialogar com aquelas pessoas que planejam e executam decisões sobre mobilidade. Nós, ciclistas, sabemos que tudo acontece através da burocracia e não abrimos mão de participar de decisões que vão nos afetar a cada deslocamento (e que numa escolha errada pode colocar nossa vida em risco). Detalhe: os ciclistas se oferecem de forma voluntária e não recebem um mísero centavo dos cofres públicos para ofertar essa função de aconselhamento aos entes públicos.

Se isso é bom ou ruim, eu tenho algumas dúvidas. Certamente era ruim sem essas instâncias participativas. Mas o que aconteceu após as respectivas criações desses órgãos?

Uma das reuniões presenciais do Ciclocomitê Paulista, que contam com a presença de representantes de diversos órgãos da esfera estadual. Foto: Willian Cruz/VdB

Resultados duvidosos

O passar do tempo fez com que a euforia inicial começasse a se esgotar.

Seria ingênuo se quiséssemos que todos nossos pleitos fossem atendidos. Pelo contrário, queremos entender o motivo pelo qual eles são considerados inviáveis. Estamos abertos para entender argumentos econômicos, burocráticos e políticos.

Se implantar um estacionamento em um calçadão, ou a criação relâmpago de uma faixa experimental de motocicletas em vias de trânsito rápido, são as melhores opções para a cidade, então queremos saber o que motivou essas decisões e porque elas foram realizadas em detrimento da mobilidade ativa e do transporte coletivo. Afinal, há tanta ciclovia/ciclofaixa que precisa de manutenção e tanta calçada em condições agressivas aos pedestres, que chego a pensar que para o poder público o motorista nunca sairá de dentro de seus carros.

Somos conselheiras(os) voluntários e queremos ser respeitados nas reuniões e após elas.

Estamos um tanto cansados de ouvir dos planejadores e técnicos da prefeitura que serão feitos estudos e mais estudos para analisar nossos pleitos (irônico é notar que nunca apresentam a metodologia ou resultados parciais de cada um desses estudos). Mas, por outro lado, não é raro sermos pegos de surpresa por decisões já tomadas e consolidadas sobre planos que não foram sequer apresentados para que pudéssemos saber do que se tratava. Como por exemplo o mirabolante e “infalível” projeto de ciclovia na Rodovia dos Bandeirantes.

Ao lado de ciclistas locais, o então governador João Doria prometia a conclusão da mirabolante ciclovia da Rodovia dos Imigrantes para setembro de 2023. Imagem: Twitter @jdoriajr/Reprodução

Precisamos ser levados a sério

Nós, ciclistas, frisamos que respeito não é só sermos formalmente ouvidos ou estarmos presentes em uma sala de reunião. Queremos ter nossas opiniões materialmente consideradas, seja para serem aprovadas ou rejeitadas, mas queremos fundamentação racional para ambas as respostas.

Somos pressionados por ciclistas de toda cidade e de todo estado. Os questionamentos envolvem pautas que trazemos às reuniões mas que não são respondidas. Ou as respostas dadas pelo Poder Público são evasivas.

A situação é tão Kafkiana que a impressão quase unânime é que os conselhos participativos se tornaram uma estratégia do poder público para desviar a atenção dos ciclistas, enquanto as decisões são tomadas na sala ao lado.

Prioridades

Está cada dia mais difícil explicar aos demais ciclistas o motivo do governo do estado não implementar estrutura cicloviária na Rodovia dos Imigrantes; ou a regulamentação precária sobre o embarque de bicicleta nos ônibus rodoviários; ou a recente normativa que inviabiliza grupos de ciclistas nas estradas.

Em relação à Prefeitura da capital também está cada dia mais difícil a lentidão para interligar a malha cicloviária da zona leste com o centro; a ausência de cumprimento da indicação das estruturas cicloviárias prioritárias tiradas em audiências públicas; as pontuais correções na malha existente; e a ausência de estrutura cicloviárias nas pontes das marginais.

Ao mesmo tempo, a intenção do poder público em realizar um aumento de vagas de estacionamento no calçadão do centro da capital contou com uma celeridade assombrosa. E teve seu início de execução realizado literalmente na calada da noite. Por sorte, a mobilização popular conseguiu frear esse projeto, mas sua semente autoritária continua acesa já que o modus operandi é o mesmo de diversas outras benesses aos motoristas que são implementadas da noite para o dia (motofaixa experimental, faixas reversíveis, autorização para circulação em corredores exclusivos, etc).

O projeto de ciclovia e ciclopassarela para acesso à Rota Márcia Prado, apresentado pela Ecovias em outubro de 2018. Construção nunca começou, mesmo havendo verba. Foto: Willian Cruz/VdB

É preciso mudar

Acreditamos que foram-se os tempos em que as decisões do poder público eram tomadas a portas fechadas. Falta de transparência na tomada de decisões deve ser uma sombra deixada no passado. Nesses antigos tempos, os interesses econômicos escusos e a vontade de apadrinhados políticos prevaleceram em vez de qualquer argumento lógico, técnico ou racional.

Todos (pedestres, motoristas e ciclistas) estamos cansados de sermos obrigados a cumprir decisões que não fazem nenhum sentido porque foram tomadas no aconchego e proteção burocrática dos gabinetes e longe da vida real em que vivemos.

Nós, ciclistas, continuamos e continuaremos pela cidade, queira o poder público ou não. Vamos continuar indo e vindo para casa, trabalho, parques, cinemas, comércios… Somos a solução e não um problema a ser evitado.

Nós, ciclistas, queremos respeito!

E por respeito entendemos que os rumos dos conselhos participativos devem mudar para que possamos ter nossa participação levada a sério na tomada de decisões sobre as políticas públicas de mobilidade na cidade e no Estado de São Paulo.

Foto: Willian Cruz/VdB
Guilherme Moraes
Gosta de utilizar a bicicleta em deslocamentos urbanos diários, mas já perdeu as contas de quantas pequenas viagens de bicicleta fez. Adora o silêncio ensurdecedor do cicloturismo. Ciclista e mestrando PPGHDL/USP. Possui especialização em Direito Processual Penal pela Escola Paulista da Magistratura e hoje é servidor do Tribunal de Justiça (TJ-SP).

1 comentário em “O Poder Público realmente ouve os ciclistas?

  1. Quanto mais nos engajamos na luta, mais poderemos favorecer/fomentar no categoria junto aos órgãos públicos. É muito difícil eu sei mas nada haverá de restar se desistirmos, unidos somos muitos. Parabéns pela reportagem senhor Guilherme.

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